Em resposta ao teu postal de Boas Festas, que, vergonhosamente, tardo em retribuir [este ano fiz greve aos postais, aos telefonemas e às mensagens de telemóvel], comecei a escrever-te uma carta naquele papel fininho cor de céu nebulado que comprámos há uns anos, lembras-te?
Não sei quem vejo neste espelho. Alguns trejeitos são familiares, mas mesmo as rugas que vão surgindo ao franzir o sobrolho, são agora de outra pessoa qualquer. Não reconheço o pensamento, o sentimento, a emoção. Não sei onde está quem julgava imperdível e muito menos consigo apanhar o rasto de quem queria ser.
Dizem-me que são as hormonas que me inundam de fora, em competição com as rebeldes que sempre tive, estando agora o resultado à vista... manias típicas de gaja.
Ou então nada me dizem, olhando com impotência e admitindo a ignorância de mim.
Porém, o mais certo, o mais comum e natural, é tão-somente nem sequer chegar a ser sabido pela gente, que não estou contente. Que gostava de adormecer no polo norte num quebra gelo ou fotografar as planícies inóspitas da Patagónia. Que queria deitar fora todos os arrependimentos que hoje tenho e esquecer o papel que encarno, esteja onde estiver, porquanto não posso separar-me da minha pele. Que devia estar agradecida pelas graças com que tantos sonham e de que disfruto [de mão beijada...], mas não vejo já onde está a pessoa que te levou a acreditar e a ir mais além. Simplesmente, esfumou-se e espera, sem grande alarido, que as cinzas carreguem no ventre uma nova Fénix.
Amanhã ponho a carta no correio e, se não houver greves [afinal, sabes que é o prato-do-dia neste rectângulo que quer um TGV com paragem em cada lugar com um ou mais habitantes], talvez chegue ao teu reduto nos próximos dias.
Parece-te que escrevi como nunca fiz num diário de frustrações? Bem, não sei que te diga. Não te perguntei pelo Tomás nem se já transformaste aquele sótão fabuloso onde ainda hei-de passar umas horas, um dia. Mas tudo isso está no meu pensamento e não me esqueci tão-pouco do teu aniversário daqui a poucos dias [será que lês a carta antes do telefonema no dia do envelhecimento?]. Sei, contudo, que uma missiva com um mero olá e adeus seria uma ofensa e, mesmo à distância [sobretudo por isso], não me deixarias de repreender por encobrir um desabafo.
E talvez as primeiras linhas tenham sido apenas isso. Uma coisa qualquer esquisita e irrepetível [querem que creia], que me fez apenas sair do quarto e da companhia do bloco e da caneta, sentar-me diante do Sol poente e olhar o verde em redor, os patos do lago, a areia grossa do caminho e o mar, à distância de uns passos.
Ao retomar esta carta [será a retribuição das Boas Festas um pretexto?] tenho vontade de acender a lareira com o papel sedoso onde escrevo. Só que... iria cair depois na missiva impessoal. E não, tudo menos isso. Envio-te então, à minha conta e risco, o que foi brotando em tinta permanente. Não que me agrade ler o que te disse. Porém, não tenho motivação para começar tudo de novo. Sim, perdi a vontade. Só isso. E custa-me sentir os olhos humedecidos à minha volta. Vi-os há instantes...
Mas tu, diverte-te no Inverno frio da tua nova casa. Sei o quanto gostas de passear nas ruas aquecidas e do chocolate quente sob o pretexto do tempo agreste... :)
Até um dia.
Do papel para o mundo