30 de junho de 2007

Partes palpáveis de coisas que não se explicam

.
.
Não, não é plágio de uma ideia alheia.
Apenas, talvez, uma forma semelhante de contar parte de uma [minha] história inacabada, que escrevo a cada dia. Sem saber como acabará, onde estará o protagonista quando vir a última luz ou se se arrepiará ao Sol nesse instante. Se sentirá alguma coisa, no fundo.
Uma expressão de gente que me bateu à porta da inteligência enquanto caminhava no nevoeiro desta manhã fresca.
Simplesmente, em vez de palavras, as imagens de pedaços de vida que desfilam aos olhos do meu pensamento, ao ritmo do tempo do mundo. E que dão um descanso aos textos que retenho até outros dias.
.
Uma espécie de nada que não se explica mas se guarda com cuidado ou se usa à exaustão.
.

28 de junho de 2007

Um vazio de letras

Sim, um vazio de letras.
Como se as não houvesse em diversidade bastante para descrever o inexplicável.
Vá lá alguém entender porquê.
Nem eu percebo.
.

Jun/'05
.
Eu, que só queria dormir, acordar e achar piada ao Sol que me veste a pele de vermelho diabólico.
Eu, que prefiro inifinitamente as minhas feridas abertas, às chagas que mutilam os corpos caminhantes ao meu redor.
Eu, que, na falência dos sons, recorro ao silêncio para conversar com aqueles vultos magoados, que abafam lágrimas de desilusão, soluços de tristeza, perdas de si, desejando que nunca eles percebam as tormentas que possa ter e que voltem, isso sim, depressa, bem depressa, à estrada solarenga que nunca deviam ter abandonado, ao percurso que interromperam por momentos. Para que, se quiserem, afoguem em mim toda a dor que os dilacera, devagarinho. Em mim, que não me importo de apenas escutar. Para que uma espécie de pequenino conforto rodeie os seus ombros. Porque, afinal, prefiro inifinitamente as minhas feridas abertas, às chagas que mutilam os corpos caminhantes ao meu redor.

24 de junho de 2007

Apenas as minhas palavras

Junho/'07
.

Talvez pelo desejo de dormir, só dormir e acordar, sem mais.
Talvez pelos tantos sons que preencheram estes dias que [decidi e] dediquei a ouvi-los, a deixar que entrassem de novo nestes ouvidos cansados de outras vozes que preferia calar, esquecer.
Talvez...
Sim, talvez mesmo por essa vontade secreta de ceder à entrega de mim ao mundo desconhecido dos sonhos, esses que há muito não tenho no sono, nem que por um instante fugaz quando mergulhada em água fumegante e incontáveis bolhinhas brilhantes, vibrantes na água, à luz ténue de velas.
Talvez...
Sim, talvez por tudo isso.
Talvez porque suspensa pelos acordes mágicos e vozes arrepiantes que me ampararam nestas tardes de Verão incerto, contando histórias de amores e desamores, tristezas e vitórias, pobrezas e ambições vestidas de determinação, magnificamente fundidos na perfeição de uma música, uma canção, um espectáculo maior do que o tempo que a vida oferece ou que lhe podemos roubar no silêncio da noite.
.
Sim, talvez assim possa explicar a leveza de espírito que leva daqui este meu difícil de mostrar e compreender, refugiado no mundo das palavras e... de um tanto tão grande que escapa à descrição.
.

Mas não só.
Talvez também a proximidade de ti, que me embriaga de um perfume de mil cores e sabores, cortando a respiração que procuro não perder, fugindo, no fundo, da realidade distorcida para ser abraçada pela sinceridade dos gestos, das palavras sentidas, das íris presas naquelas minhas desgastadas.
.

Sim, talvez tudo e por tudo isto, tenha conseguido minutos inigualáveis de refúgio na morada da arte e da paixão que me tornam um pouco mais quente. Um pouco menos distante.
.

23 de junho de 2007

No tempo

Baloiçando, Junho/'07
.
.
Não há dias maus. Há os dias que se vivem.
Nem há repousos absolutos. E até os relativos desconfio que acalmem os ruídos que não se abafam com o sono. Há apenas o cerrar de olhos pela exaustão ou pela obrigação fruto da hora que não pára.
.

19 de junho de 2007

Depois

Seis meses depois.
Há ainda quem não imagine, nem nos mais inesperados sonhos [daqueles que povoam o sono vindos de um lugar desconhecido, com um propósito sem nome], com quem se cruza realmente quando calho de me encontrar no seu caminho. E nunca vai fazê-lo. Nem saber. Por tantas razões e por nenhuma que queira tirar de dentro do peito agora, que escrevo.
.
Tantos dias depois, as lágrimas [tantas!, e silenciosas, amargas, sozinhas, sem suspiros] foram secando, brotando por ora somente aqui e além, no silêncio ensurdecedor do meu recanto, nos minutos inominados de uma tristeza e desilusão erguidas ao longo do tempo, porém apenas ao alcance da vista naquele e a partir daquele autêntico estalar de dedos. Afinal, uma gota é sempre uma gota e enche sempre o copo da mesma forma. Mas existe aquela gota que, fruto de quando surge e de ser aquela que é vertida sobre tantas outras já esquecidas e numerosas, molha a toalha. Acredito agora ser eu qual copo, e ter sentido deslizar essa gota igual mas diferente das demais, porquanto mais espessa, mais pesada, tingida de negro por uma tinta sem odor. Aquela que abriu os olhos e fechou portas e janelas de mundos que pensava conhecer e daqueles que via à distância de uma mão. Aquela que, por si e pela água inesperada que encorpava, mudou os contornos de mim; e não apenas uma ou outra aresta.
.
E quase desisti para sempre de escrever, de ler, de escutar os sons das melodias do mundo.
Vi em mim nada. Senti o nada e um vazio tão grande que as palavras me fugiram da garganta, o pensamento se cindiu em fenda agudaçada, o sentimento desapareceu. Emudeci ao resvalar da dor lanciante, caída aos trambolhões do castelo da desilusão. O coração contorceu-se e, arrepiado no seu canto, cobriu-se de uma geada perene.
.
O desgosto.
O descrédito.
O desnorteio.
O falhanço, na oportunidade perdida.
A mágoa de, afinal, ser apenas um número insignificante entre os milhões que respiram este mesmo ar.
Vieram. Estilhaçaram quem pensava ser. Incineraram tudo. E ficaram. Ninguém os apaga.
.
A solidão, que antes apenas vivia como espectro espreitando pelo buraco da fechadura (e que fingia não existir, mesmo sentindo o seu respirar sobre o ombro) e que ganhou corpo e se mostrou com todos os seus contornos.
O latejar dos cortes dissimulados e ignorados ao longo dos anos.
Vieram depois também (como a gota do agora que molha o fino linho). Estilhaçam quem resta. Incineram com requintes de malvadez. E ficam. Ninguém lhes pode deitar a mão.
.
Seis meses depois ainda não sei quem mora aqui. Ou quem cá morava.
As manhãs começam cedo, as noites passam num tempo que desconheço, os dias acontecem sem que lhes apanhe o rasto.
Os sorrisos acontecem para não fazer chorar e as minhas lágrimas, essas abafo-as num sítio onde ninguém entra.
Os olhos nada procuram quando olham o espelho e o caminhar faz-se para não parar no meio da estrada.
.
Mas para as gentes destas paragens, esta vida que alimento é invejável e perfeita. E tudo parece tão bem do lado de fora de mim!, porque, no fundo, I'm the great pretender, aquele que dá a ver o que querem ver os olhos da multidão; e não há quem imagine, nem nos mais inesperados sonhos [daqueles que povoam o sono vindos de um lugar desconhecido, com um propósito sem nome], com quem se cruza realmente quando calho de me encontrar no seu caminho. E nunca vai fazê-lo. Nem saber. Por tantas razões e por nenhuma que queira tirar de dentro do peito agora, que escrevo e mancho sem dó estas páginas.
.
E, sim, há dias maus na vida de toda a gente.
.

Aqui ao pé do vidro, Maio/'07

.
Porém, não queiras o meu adormecer, o meu acordar ou até o meu conduzir solitário.
.

17 de junho de 2007

Noutro calor cinzento

Foz do Porto, Agosto '06

Aquele descanso.
.
Aquela serenidade que é preciso não perder. Aquele desequilibrado equilíbrio que impede que caia do alto do arame… e que há tanto não dizia “estou aqui, pensavas que abandonava este lugar estranho?”, começou a gritá-lo baixinho. Num brado abafado porém ouvido no silêncio de um ruído de fundo constante, voltou a ecoar. Magia? Feitiçaria? Encantamento? Maldição? Necessidade, talvez. Em vez de tudo isso.
.
Pressenti-lo, chegando cada vez mais perto, imiscuindo-se por entre ideias confusas, pensamentos contraditórios, sentimentos fundidos, emoções distorcidas, sensações duvidosas, inteligência vacilante, alma dorida enfim, quase reconhecendo o perfume da calma incondicional de que se reveste, está para lá da descrição inteligível; linguagem alguma consegue moldar o mais complexo dos pensamentos que tente criá-la.
.
Porque não se explica. Vive-se. Pressente-se chegando. Arregala-se os olhos na tentativa de distinguir os seus primeiros contornos. Recebe-se de sorriso contido. Porque é tudo quanto se quer para olhar de frente o horizonte e se ser quem se quer. Onde e como se quer. Porque é quanto baste, logo desejo antigo, ambição gananciosamente perseguida.
.
Pressenti-lo, chegando cada vez mais perto, imiscuindo-se por entre ideias confusas, pensamentos contraditórios, sentimentos opostos, emoções distorcidas, sensações duvidosas, inteligência vacilante, alma dorida [vertendo lágrimas de pedra aqui e além, negando dizer porquê]. Recebendo esse descanso do corpo e mente com sorriso contido. E observando em redor. [Porém]
.
Mecanicamente inerte, sem saber já que é feito da subtil arte do silêncio e/ou da palavra, contemplando, do alto da cadeira almofadada, qual liliputiano recostado em poltrona de Golias, a dor. A dúvida. A súplica. A incerteza. A ferida. A confusão. A interrogação. A mágoa. Tudo e nada num rosto sem olhar. Então perpetuando a dor. A dúvida. A súplica. A incerteza. A ferida. A confusão. A interrogação. A mágoa. Tudo e nada num rosto talhado pelo sofrimento. Ferindo e deixando cravada a dor. A dúvida. A súplica. A incerteza. A ferida. A confusão. A interrogação. A mágoa.
Tudo e nada.
Naquele rosto.
.
08/'06

16 de junho de 2007

Desliza

.
E como tenta... com uma palavra, um gesto, uma surpresa, um ralhete até.
.
Tenta tocar de novo um mundo que, erradamente, pensa ja ter tido perto de si. Mas que nunca esteve próximo, porquanto sempre distante, mesmo se aparentemente ali ao lado.
.
Tenta estar perto, conhecer, saber mais, perceber melhor quem, afinal, nutriu dentro de si e, um dia, apresentou ao mundo, para que crescesse, sorrisse, brincasse e se afirmasse. Mas é uma luta inglória. Dia após dia. Desde há muito. Desde sempre. Não atravessa os portões cerrados, nem entra pelas falhas nos muros espinhosos que se erguem na menina diferente.
Na verdade, quem dela se alimentou num resquício de vida há muito começada, cedeu nessa passagem transitória apenas às forças da natureza, como que usando e abusando de um ventre quente para poder assim tornar-se o corpo forte que havia de ser dado ao mundo num dia de calor.
.
Mas ela tenta sempre perceber quem, afinal, se senta naquele quarto olhando para o nada, lendo de tudo, nada dizendo de si, vedando-lhe acesso aos desabafos que gostava de ouvir e às dores que queria acalmar. Aproximações em vão.
.
Continua tentando, talvez sem saber o quase nada que sabe de quem vê, ali. E nota-se. Na voz, nas palavras, nos gestos, nas surpresas, nos silêncios, que continua tentando. Com alguma mágoa. Com dor de mãe.
.

.
Só que não sabe a imensa distância que nos separa. Cada vez mais.
.

14 de junho de 2007

Noutro dia assim; escuro, chuvoso, ventoso

.

Lia umas páginas num instante. Daquelas que te dizem "lê só esta parte, vá lá, não demora muito; só mesmo esta passagem". Curioso. Muito curioso. É incrível como gosto de mergulhar nessas poucas frases. Deixá-las ecoando em mim? Nem sempre. Às vezes. Quando os planetas se alinham nesse sentido. Acontecimento raro esse? Não respondo. Tal como prefiro não retorquir ou não tomar sequer a palavra em alguns instantes. Uma opção arriscada, difícil de tomar, difícil de digerir e ainda mais de explicar.
.
Decisões, conclusões, resoluções. Tantos plurais para tão poucos resultados. E porquê, se afinal todos elas sempre estiveram por aí. Esperando apenas que alguém abrisse definitivamente um pouco mais os olhos para que as visse. Onde sempre estiveram, como sempre estiveram. Agitando os finos braços no orvalho da madrugada, no calor do meio-dia ou na brisa do fim-de-tarde.
.
Tristezas, mágoas, lágrimas. Uma dor visceral que nem o mais forte dos vendavais desenraiza. Uma sensação fria e cortante peito acima, que estanca na garganta e aperta, sufocando com maozinhas de lã sem retirar por completo o ar. Um arrepio constante. Um pequeno martelinho batendo incessantemente em baixo volume, desenovelando a concentração, minando a atenção, destruindo a inteligência. Uma mágoa do que há-de vir [hoje, amanhã, depois] que corrói sem piedade, que torce o coração qual toalha encharcada ao fim de um dia de brincadeira perto do rio. Uma incerteza sem razão, porquanto sendo uma ilusão; não uma incerteza real, apenas uma incerteza criada na tentativa de afastar uma certeza para lá de quaisquer dúvidas. Mas um dia questionada... quiça se para ser diferente? Uma perda de emoções. Um assistir à sua partida, lenta, vagarosa, sem pressas. Cada uma levando todo o tempo deste mundo e do outro até sair e caminhar para longe. Uma dor que não dói ao vê-las embarcar.
.
Tudo e nada.
Só uma [pseudo] sabedoria guardada naquela caixinha misteriosa. Escondida num espaço que nem o tempo já recorda. Em cuja tampa se lê, gravado pelas chamas de outras eras, ser impossível prever o alcance das acções na existência que se vive como nossa, restando apenas agir. Bem, mal. Bem para mim, mal para ti. Mal para mim, bem para ti. Bem para mim, bem para ti. Mal para mim, mal para ti. Não sei.
.
E lá dentro, o que está?
Não posso dizer.
Sei?
.

.

Também não seria percebido.
Agosto '06
.

13 de junho de 2007

Pausas de nada

Mendigar, pedinchar, suplicar por um presente, uma lembrança, um brinquedo de criança ou consolo megalómano de gente grande. Não, não consigo. Não, não acontece. Não, não faço por ser de outra forma.
.
Ter de tudo, ter tudo; ter sempre, ter quando quiser; ter. Sempre foi assim. Sempre tive.
.
E, no meio de tantas pertenças deste mundo e daquele que se sente e não se toca com as mãos, apenas peço, baixinho, para mim, quando apenas alguém lá em cima escuta, um presente.
.
E quando o não receber...
.
Dá-me um abraço. Não diminui a dor. Mas ajuda a que os olhos se fechem, por momentos. E fujam. No silêncio de um instante eterno. Naquele silêncio.
.
.

"O silêncio da cumplicidade, quando,
de um lado para o outro da sala
povoada de pessoas sem cara, um olhar, um gesto,
um sorriso dizem tudo"
.
[Francisco Pinto Balsemão]

12 de junho de 2007

Desculpa, não é um conto de fadas que escrevo... talvez seja a voz do cansaço

.
Esta é sempre a noite mais longa do ano. A noite mais escura, apesar das estrelas que despontam por entre farrapos de nuvens que, num ou noutro desses anos, vagueiam lá em cima. A noite sem conforto, sem companhia além de mim, povoada pelos sons inconfundíveis da cidade adormecida. O serão que se transforma em madrugada, num piscar de olhos de cujas profundezas emerge um embaciado sem legendas. As horas que parecem não passar, relembrando tanto do vazio, que pouco mais se espera que chegue com os primeiros clarões da manhã nascente. Afinal, pouco chega, de facto.
.
Não há inveja, muito menos cobiça do que outros têm, vivem, são. Isso jamais. Apenas a questão: como seria se houvesse quem se lembrasse. Diferente, obviamente. Talvez, não sei, não fosse melhor e, pior, duvido que pudesse conseguir. No fundo, como seria não passar outro e outro ano levando facadas que, sarando, cicatrizam cada vez menos bem. Até que podia ser engraçado lembrar de alguma gente, segurar no telefone e partilhar um dia que se quer de festejo, sorrisos, brincadeiras. É, até que podia. Mas isso são as coisas que vêm à cabeça enquanto se escreve. Não são aquelas que acontecem na noite ou dia que lhe cedeu posto.
.

.
A noite mais longa do ano.
Tem tantas horas como as outras, acontece no mesmo quarto daquelas outras menos extensas, desaparece ao som das mesmas músicas que repousam nestes ouvidos que duvido alguma vez se terem fechado.
De especial tem ser a mais escura, aquela em que a companhia se revela como é – na prática, uma ilusão; aquela que dá lugar a um dia sem cor, sem sentido, dispensador de balanços e resoluções de ocasião, sem telefonemas, sem convívio especial. Um dia que bem podia servir de rio a uma nova ponte, e ser passado por cima sem olhar o que corre lá em baixo.
.
É a noite que vê nascer o dia dos meus anos.
A cada ano, por imposição do Tempo, irrepetível e imutável. A cada ano mais esquecido.
Este ano, em especial, deveras insignificante. E quase esquecido, não fosse por impor a memória de que facilmente um quarto de século se passa sem criar laços que valham a pena.
.
E que tal agora ir dormir e deixar chegar o Sol que se adivinha perto?
.

11 de junho de 2007

Se fosse colunista...

.
E então? Qual é o problema? Fere-te a vista a pele reluzente cor de ébano? Ou serão os olhos amendoados que a mãe, nascida nos países frios do Norte e um dia enamorada do brilho de umas mãos quentes vindas de outro continente, lhe deu de presente ao nascer, e que nem em sonhos poderás igualar, porquanto os tens gelados por dentro, que te corroem as entranhas? Não. Talvez sejam antes o espírito voador, a inteligência sublime, a perspicácia subtil, a sensibilidade que resiste aos teus ataques, os pequenos "quês" que te fazem desprezar o que não conheces. Certamente será algo deveras estranho e que tento, não sei se em vão, perceber, que te faz pensar e sussurar por detrás da porta, que ele não pertence aqui.
.
Sabes? Então, talvez também eu não faça parte deste lugar. Os olhos claros que se perdem no céu e se fecham ao sair do recato da casa [e que evitas olhar mas que te forço a ver quando abres esta página, e percorres este espaço sem interesse, todas as vezes, sempre], e a pele translúcida que deixa ver os caminhos do sangue quente e se queima ao mais pequeno sopro do Sol, não são evolutivamente típicos daqui. Talvez de outras paragens. Mas não destas coordenadas banhadas pelo calor e pela luz da nossa estrela. Não. Também eu, portanto, não mereço ocupar espaço neste teu mundinho.
.

'06

.

10 de junho de 2007

Entre velhas coisas

.
Sinto os dedos sem água, a pele ressequida, gretada, como que coberta de escamas, emanando agora elas o odor forte que lhe chegou daquelas folhas amarelecidas, gastas, cobertas de pó. As mesmas que, quase se esfumando nas minhas mãos, desfolhei ao Sol nascente que ganhava vida por entre os vidros transparentes, quando descobri o velho livrinho no sótão, já de capa desbotada e sem brilho. Nem sabia que existia. Não imaginava que alguém, no passado que desconheço, num presente que tantas vezes quero esquecer, ou até num futuro que às vezes duvido que venha a existir, pudesse ter escrito e descrito o que li; com tanta simplicidade, abertura, clareza, despeito, sinceridade, sentimento até.
.
E foi, no mínimo, curioso, ler passagens breves de pequenas histórias de dias e noites como as da vida de toda a gente, pensamentos imaginados de um mundo de heróis e pessoas de todas as cores, feitios e tamanhos. Tão curioso e diferente, que uma ou duas ou mais horas, quem sabe agora, voaram sem que desse conta que o Sol, outrora nascente, ia já alto e muito mais quente. Embebida no manuscrito perdido entre velhas arcas, pesadas tapeçarias carcomidas pela traça e tanta, tanta quinquilharia que quase um antiquário podia abrir naquela parte alta da minha casa, apenas regressei ao agora pelo queimor que senti e que apenas um Sol de meio-da podia trazer. E regressei quando a viagem pelas folhas soltas estava também quase finda. Faltavam ainda umas vinte e poucas linhas e um virar de página. Depressa as deixei entrar por meus olhos e dar por terminado o voo em que embarcara já não sei quantos muitos minutos antes. E só então, na última página, nas costas da última folha, manchada pelo bolor do tempo e acusando o desprezo das incontáveis noites passadas no esquecimento de umas águas furtadas, encontrei a assinatura do pensador e emocionador do que li.
.

.
E foi, no mínimo, curioso, ver o meu nome rabiscado nesse lugar. Era, afinal, um meu velho caderno de histórias. Uma espécie de nada que bani da memória até que um furtuito encontro, o trouxe de novo à recordação.

7 de junho de 2007

Calor de outros dias

Vou tentar adormecer, como simplesmente aconteceu à sombra de um Sol quente naquele dia. Foram apenas uns poucos minutos. Uma pequena fracção de hora de sol poente que me levou de vencida. Nem sequer lembro se sonhos foram sonhados ou pesadelos chorados. Recordo apenas o aroma da relva, o cheiro forte do calor no pico do Verão, os voos rasantes das andorinhas sequiosas, as borboletas desnortedas. Esqueci já a companhia que não tinha, para antes reter a solidão que me fez adormecer e deitar por terra, num momento irreal, o livro pesado que percorria incessantemente.
.
Não que tenha sono. Não que esteja cansada. Quero apenas sentir outra vez o som da água ondulante à passagem de um pássaro rebelde, recordando-me das certezas que tinha e de onde as havia guardado bem guardadas.
.
Só quero mais logo, depois desses minutos, novamente despertar.
.

Jul/o6

5 de junho de 2007

1 with U

.
Perdi a conta às madrugadas em conversa ao som daqueles acordes escolhidos a dedo ou oferecidos, ao acaso, pelo rádio, cantado baixinho na noite escura e orvalhada; às ideias discutidas, às pequenas descobertas, confissões e confidências que surgiram vindas da espontaneidade de uma espécie de amizade despretensiosa que se erguia sobre a curiosidade sadia de duas gentes à parte. As conclusões, as dúvidas, os sorrisos adivinhados, os sons que dançavam no ouvido, os arrepios ao ver a proximidade na diferença, o sono que se impunha na noite já longa, os desabafos sem mais nada, esses e todos eles, na diferença que trouxeram aos crepúsculos feitos noite e depois quase manhã, recordo um a um. Conheço os contornos das palavras que ganharam corpo na frontalidade daqueles ruidosos pensamentos que as fizeram sair de nós. Reconheço-os pelo aroma, pelo toque, pelo timbre, pela cor, pelo agridoce que os tornou únicos, impossíveis de não querer agarrar.

E depressa perdi a noção do Tempo que foi passando, do reboliço que cresceu dentro desta minha cabeça inquieta e insaciável, sequiosa de tudo, incapaz de parar, serenar, descansar. Não me apercebi da passagem do Verão, do Inverno, do calor, da chuva, da neve, das flores da Primavera, dos primeiros frutos de nova estação quente. Não reparei nos segundos que corriam, imparáveis; passei-os entre sorrisos, lágrimas, descobertas, mágoas, festejos, perdas, silêncios de dor e tristeza inexplicável, incontáveis textos escritos à luz do velho candeeiro ou da Lua alta, num recanto do meu jardim aquecido pelo Sol que se deitara horas antes.

Perdi a conta às noites multicolores e a noção desse Tempo fugidio, na companhia de um olhar, um abraço, um perfume, peças de um puzzle humano inebriante, que um dia [e cada dia mais] se aventuraram sobre mim, quantas vezes tão próximos que apenas um contorno de nós sentia quando cerrava as pálpebras e viajava sobre tudo e todos, perdida em mil coisas sem nome, vagueando por mundos distantes, para, depois, regressar à certeza do calor daquele corpo que me envolvia. Em silêncio. Somente sorrindo ao ver-me regressar. Quiçá mais liberta da raiva, frustração ou simples tristeza e indefinição que me tivessem feito flutuar naqueles instantes. Aqueles em que dias sem nexo clamavam por isso mesmo; o silêncio entre ruídos conhecidos, as palavras não ditas, o estar sozinha acompanhada.

Chorei.
Sorri.
Adoeci.
Cresci.
Envelheci.
Perdi.
Silenciei.
Viajei.
Enlouqueci.
Experimentei.
Inventei.
Adormeci.
Despertei.
Ouvi.
Olhei.
.
.
Não pela primeira vez.
Mas uma e outra novas vezes.
Porém, agora na certeza crescente de uma presença diferente, ali, à distância de um olhar, um sussurro, um pedido calado de ajuda; tão diferente na [nossa] semelhança e na oposição rica de tudo, que mente engenhosa alguma poderia ter maquinado propositadamente tão invejada partilha de estranhezas [tão nossas, quanto inexplicáveis] ou, numa palavra, cumplicidade. Na certeza, reconheço, da calma que consegui encontrar nos dias que desejei riscar da vida e que encontrei, afinal, naquele simples adormecer aquecida pelo respirar sereno sobre o meu ouvido, no bater compassado desse coração ambicioso dentro do peito em que repousei o rosto cansado. E que me observava enquanto dormia [ele e eu], porquanto o transcendente vê de olhos vendados.

A realidade deste Tempo que foi acontecendo? Uma espécie de nada veio de local incerto e ficou.

E agora? Toco ao de leve, desejo no silêncio, olho fundo nos olhos para ver e chegar um pouco além do óbvio. Sempre. E mais. O segredo? Gostar de uma forma tão simplesmente incrível, apenas isso e nada mais. De ti.

.

.

«(...) Mas eles conseguiram-no, por vezes pisando os destroços do que parecia definitivamente perdido, mas seguindo em frente, quase com o desespero dos náufragos. Há anos que ela descansa o seu cansaço no ombro dele, que ele alisa o seu pescoço comprido, lhe apaga as olheiras e adormece com uns olhos azuis e ternos vigiando o seu sono.»

[Miguel Sousa Tavares, Não te Deixarei Morrer, David Crockett]

2 de junho de 2007

Sem caixa de correio

A gente toca a loucura sem saber, todos os dias, sem excepção, porque, afinal, a gente vive ao seu lado; sem saber, sem sequer imaginar que numa casa sem número nem porta nem janelas nem telhado ou jardim, comprimida entre prédios altos que subimos à velocidade das máquinas, habita a insanidade que se passeia connosco, voa quando partimos do lugar de sempre, navega ao sabor das mesmas ondas que nos levam ao ponto de chegada [aquele que só conhecemos ao atracar e sentir na pele a aspereza das suas rochas, contrastando com a maciez da areia fina, ao cheirar os seus jardins exóticos e ver a pele ganhando nova cor sob um Sol diferente do que nos acorda noutras paragens].
.
A gente toca a loucura sem saber, virando-lhe as costas e seguindo o mesmo caminho de sempre, em direcção ao destino traçado no instante em que se caminha.
.

.
Mas a gente pode entrar na casa da loucura, sacudir as cortinas pesadas das suas janelas altas e invisíveis, ficando com os olhos vermelhos pelo pó acumulado e com a pele irritada pelo bafo ébrio das traças gordas. A gente pode subir ao seu telhado escorregadio, manchado pelo lodo que cobre as telhas quebradas e daí ver um jardim invadido por ervas daninhas, espinhosas, sem cor nem forma definidas. Pode, mas é raro. E ainda bem. Não é visão agradável. Não é espectáculo para relatar num romance, numa tertúlia, numa conversa despreocupada ao chegar àquela margem e encontrar, quando se sente a pele ganhando nova cor sob um Sol diferente do que nos acorda noutras paragens e se vê, na areia fina apenas a alguns passos de jardins exóticos, um rosto conhecido.
.
Eu entrei, respirei o ar bafiento de salas sem calor, subi escadas duvidosas, sentei-me no beiral e piquei-me nos arbustos imponentes que tomavam o lugar de canteiros bem desenhados, erguendo-se alto vindos do chão, sentindo apenas o peso da pequena gota de sangue escuro que depois nasceu. Não procurei o número da porta desgastada. Sem sono, perdendo já a conta às horas mal dormidas ou apenas passadas sem descanso, ergui-me de uma cama sem sentido, olhei para o espelho e entrei.
.