10 de junho de 2007

Entre velhas coisas

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Sinto os dedos sem água, a pele ressequida, gretada, como que coberta de escamas, emanando agora elas o odor forte que lhe chegou daquelas folhas amarelecidas, gastas, cobertas de pó. As mesmas que, quase se esfumando nas minhas mãos, desfolhei ao Sol nascente que ganhava vida por entre os vidros transparentes, quando descobri o velho livrinho no sótão, já de capa desbotada e sem brilho. Nem sabia que existia. Não imaginava que alguém, no passado que desconheço, num presente que tantas vezes quero esquecer, ou até num futuro que às vezes duvido que venha a existir, pudesse ter escrito e descrito o que li; com tanta simplicidade, abertura, clareza, despeito, sinceridade, sentimento até.
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E foi, no mínimo, curioso, ler passagens breves de pequenas histórias de dias e noites como as da vida de toda a gente, pensamentos imaginados de um mundo de heróis e pessoas de todas as cores, feitios e tamanhos. Tão curioso e diferente, que uma ou duas ou mais horas, quem sabe agora, voaram sem que desse conta que o Sol, outrora nascente, ia já alto e muito mais quente. Embebida no manuscrito perdido entre velhas arcas, pesadas tapeçarias carcomidas pela traça e tanta, tanta quinquilharia que quase um antiquário podia abrir naquela parte alta da minha casa, apenas regressei ao agora pelo queimor que senti e que apenas um Sol de meio-da podia trazer. E regressei quando a viagem pelas folhas soltas estava também quase finda. Faltavam ainda umas vinte e poucas linhas e um virar de página. Depressa as deixei entrar por meus olhos e dar por terminado o voo em que embarcara já não sei quantos muitos minutos antes. E só então, na última página, nas costas da última folha, manchada pelo bolor do tempo e acusando o desprezo das incontáveis noites passadas no esquecimento de umas águas furtadas, encontrei a assinatura do pensador e emocionador do que li.
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E foi, no mínimo, curioso, ver o meu nome rabiscado nesse lugar. Era, afinal, um meu velho caderno de histórias. Uma espécie de nada que bani da memória até que um furtuito encontro, o trouxe de novo à recordação.

7 comentários:

jumpman disse...

E só posso imaginar as sensações impossíveis de descrever, geradas por tal encontro fortuito com pedaços de outrora que sem um motivo especial, agora se colam aos dias de hoje.

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Silêncio © disse...

Lindo o teu texto amiga, como é bom vir até aqui.
Desculpa a ausência, tenho andado cheia de trabalho.

Um Beijo em Silêncio

Manel Cunha Calado disse...

gostei sim senhora...
parece-me muito fresco e agradável...


:)

Idiota disse...

Achei deleciosa, esta parte:
"no passado que desconheço, num presente que tantas vezes quero esquecer, ou até num futuro que às vezes duvido que venha a existir,"...

:)

Sleeping Angel disse...

Quem te pega na mão e te toca no coração, dá-te amizade verdadeira

Angell disse...

Um passado, onde as esperanças, as motivações eram outras. Onde o futuro é risonho e onde os sonhos parecem possíveis. Onde no presente não se parecem encaixar. No entanto, "agarram" á leitura por algo de doce e mágico inserido nelas. É bom recordar... :)

Bjs!

Alma Nova ® disse...

E que emoções nascem quando, quase sem querer, nos encontramos com aquele que fomos e já quase esquecemos, em memórias perdidas no tempo. Jokitas.