28 de outubro de 2007

Resíduos



Procura na memórias dos dias que já não são, nas ânsias irreais, no futuro que poderá desenhar-se com um sorriso, no presente que te dá a mão nas horas que agora passam por ti. Procura ou deixa que te encontre, a recodação, sem névoas nem chuviscos, daquele sentir perto um e outro dedo da mão aquecida pelo coração, tocando-te ao de leve na pele do ombro, arrefecida pelo Inverno; contando-te histórias como quem desenha momentos em cada centímetro de ti; falando-te na linguagem do tacto, colorindo as palavras com perfume; esse mesmo que te desliza nos poros e queima... sem deixar cicatriz; antes, um desejo ainda maior de não cobrir a pele frágil que tornaste um pouco menos tua e mais vossa.
E quando encontrares, diz-me nos olhos, firmando a voz, se é possível escritor algum romancear a história da tua vida; todos os instantes em que te arrepiaste por sentir a respiração do conforto perto do teu ouvido, levando a tua mão de encontro àquela que te arrancava os medos do rosto, simplesmente porque descontraía cada um dos teus músculos ao deslizar pelo teu braço caído.
Diz-me.

26 de outubro de 2007

Sentidamente

Quando era pequenina, muito pequenina mesmo, aprendi com gente grande a rezar. Melhor, aprendi que podia conversar de forma especial com alguém que me ouviria na solidão dos dias ou no extase da conquista.
Retive palavras da minha mãe que ainda ecoam, dizendo-me calmamente para guardar uns momentos antes de adormecer para falar na minha língua sobre-humana com esse companheiro de viagem; estivesse sorrindo por dentro ou brontando lágrimas na almofada, lembrando na minha oração simples quem mais acarinhava.
Recordei sempre os meninos que dormem relento, sem o calor de uma casa, e os crescidos afastados da sua terra pela força das armas encobrindo a fraqueza dos Homens.
Nunca esqueci quem me ajudava a crescer depois de me ter dado vida, muito menos olvidando o companheiro de brincadeiras que dormia, sereno, num quarto colorido perto do meu.
Mas não tenho memória de lembrar outra gente.

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Até que um outro nome entrou na minha conversa silenciosa, antes de adormecer. O teu.
Recordo-te para que também um anjo de asas negras vele por ti no sono atribulado que pudesse esperar-te, colocando sobre ti a mão que em sonhos deixo que seja minha.
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22 de outubro de 2007

Quando se pára

Cheguei.
Cheguei aqui vinda de sítio inominado, passados muitos anos desde ter começado a andar, de olhos abertos e mãos mergulhadas nas recordações; as que se relembram e as que se constróem.
Cheguei aqui hoje também, despertando do mundo da magia que me levou a sobrevoar o esquecimento das mágoas, vivendo minutos pesarosamente finitos de... fuga.
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E tenho comigo uma dor que chama baixinho e cresce quando a razão fala e o sentimento se impõe. Tanta gente sofre a perda de sustento, vive enclausurada entre paredes frias e grades que dividem o Sol, acorda doente e sem esperança de sentir muitos mais acordares, caminha mutilada e treme a cada ecoar de bomba inesperada.
E eu, que aqui cheguei vinda do Tempo que me impeliu e do Lugar que me acolheu, devia esconder a cabeça com vergonha e bendizer o que, mesmo sem descrição que lhe conheça, me corrói a cada dia. No fundo, a maior benção que poderia descer sobre as almas que vejo ao meu redor em sofrimento.
Eu, que sinto a escalada da minha mesquinhez quando vejo os pesares que se abatem sobre estas almas, pressentindo o estilhaçar das minhas maleitas perante a pequenez que as reveste. Mas tenho pesadelos que sobressaltam o sono atribulado, gravando na minha almofada aquele arrepio eterno ao adormecer e a angústia do vazio enraizado ao acordar. E caminho sem saber porquê nem até quando. Ou para quê. Ou onde.
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Ainda assim, sorrio ao ver-te dormir. E vigio o teu sono. Na noite, na madrugada, na manhã nascente.
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19 de outubro de 2007

Orvalho

Vou-te contar o que vi pela janela.
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O céu ainda escuro e, desenhadas no horizonte, cores esfumadas de uma manhã quase a chegar. No vale, um ou outro carro, lá ao fundo, na estrada; seguindo, sem som que me chegasse, de luzes acesas no asfalto negro. E, com os olhos dos outros sentidos, o zumbir do vento nas árvores altas, o calor anunciado de mais um dia nascente, o perfume forte dos frutos de Outono, chamando pela goludice de abelhas e gente comum.
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Foi o que vi pela janela enquanto me aquecia por dentro, deixando o poder do chocolate quente tomar conta do fim da madrugada.
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Sem sono.
Sem vontade de ir.
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14 de outubro de 2007

Listen closely, listen carefully

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Hoje.
Simplesmente.
Sem outras felicitações senão as que saem da música e de um abraço cúmplice.
Apenas chamando a recordação de ti que guardas na memória, lembrando-te do diferente que és na unidade e constância que não podes dizer ser-te alheia.

Hoje. Simplesmente. Palavras em sons ao envelhecer.

9 de outubro de 2007

Na hora do Sol

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Não sei que diga ou escreva.
Tenho o pensamento entorpecido.
Pousei a caneta e agora os livros de faz-de-conta não ganham novas páginas.
Talvez o vazio ou aquilo que prefiro não nomear para não chamar, seja grande demais.
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5 de outubro de 2007

Vagueios

E a pouco e pouco se deixa fugir pedaços de tudo.
Ficam retalhos de nada demasiado pequenos para construir seja o que for, sem que artista algum consiga reciclar o que mais não são do que vidas sem sentido.
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Vê-se o nevoeiro e o sol quente da mesma forma; aquela que de tão simples e banal, sem nada mais esperar do que o amanhecer ou o arrefecer da noite, perdeu o encanto.
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"Pronto: morri. E agora? Agora preciso do teu amor mais do que nunca."
[Carlos Nóbrega, A Invenção da Alma]

1 de outubro de 2007

Por baixo da pele

O silêncio que me sufoca, nasce das palavras que não digo, encravadas na garganta numa escuridão fria sem madrugada. Aquele silêncio cravejado de lágrimas sem sabor, que abafo e que transformam o sentir do pensamento, numa dor intensa, latejante, gritante sem se fazer ouvir.
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Esse silêncio que já não sei como calar.
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