19 de junho de 2007

Depois

Seis meses depois.
Há ainda quem não imagine, nem nos mais inesperados sonhos [daqueles que povoam o sono vindos de um lugar desconhecido, com um propósito sem nome], com quem se cruza realmente quando calho de me encontrar no seu caminho. E nunca vai fazê-lo. Nem saber. Por tantas razões e por nenhuma que queira tirar de dentro do peito agora, que escrevo.
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Tantos dias depois, as lágrimas [tantas!, e silenciosas, amargas, sozinhas, sem suspiros] foram secando, brotando por ora somente aqui e além, no silêncio ensurdecedor do meu recanto, nos minutos inominados de uma tristeza e desilusão erguidas ao longo do tempo, porém apenas ao alcance da vista naquele e a partir daquele autêntico estalar de dedos. Afinal, uma gota é sempre uma gota e enche sempre o copo da mesma forma. Mas existe aquela gota que, fruto de quando surge e de ser aquela que é vertida sobre tantas outras já esquecidas e numerosas, molha a toalha. Acredito agora ser eu qual copo, e ter sentido deslizar essa gota igual mas diferente das demais, porquanto mais espessa, mais pesada, tingida de negro por uma tinta sem odor. Aquela que abriu os olhos e fechou portas e janelas de mundos que pensava conhecer e daqueles que via à distância de uma mão. Aquela que, por si e pela água inesperada que encorpava, mudou os contornos de mim; e não apenas uma ou outra aresta.
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E quase desisti para sempre de escrever, de ler, de escutar os sons das melodias do mundo.
Vi em mim nada. Senti o nada e um vazio tão grande que as palavras me fugiram da garganta, o pensamento se cindiu em fenda agudaçada, o sentimento desapareceu. Emudeci ao resvalar da dor lanciante, caída aos trambolhões do castelo da desilusão. O coração contorceu-se e, arrepiado no seu canto, cobriu-se de uma geada perene.
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O desgosto.
O descrédito.
O desnorteio.
O falhanço, na oportunidade perdida.
A mágoa de, afinal, ser apenas um número insignificante entre os milhões que respiram este mesmo ar.
Vieram. Estilhaçaram quem pensava ser. Incineraram tudo. E ficaram. Ninguém os apaga.
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A solidão, que antes apenas vivia como espectro espreitando pelo buraco da fechadura (e que fingia não existir, mesmo sentindo o seu respirar sobre o ombro) e que ganhou corpo e se mostrou com todos os seus contornos.
O latejar dos cortes dissimulados e ignorados ao longo dos anos.
Vieram depois também (como a gota do agora que molha o fino linho). Estilhaçam quem resta. Incineram com requintes de malvadez. E ficam. Ninguém lhes pode deitar a mão.
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Seis meses depois ainda não sei quem mora aqui. Ou quem cá morava.
As manhãs começam cedo, as noites passam num tempo que desconheço, os dias acontecem sem que lhes apanhe o rasto.
Os sorrisos acontecem para não fazer chorar e as minhas lágrimas, essas abafo-as num sítio onde ninguém entra.
Os olhos nada procuram quando olham o espelho e o caminhar faz-se para não parar no meio da estrada.
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Mas para as gentes destas paragens, esta vida que alimento é invejável e perfeita. E tudo parece tão bem do lado de fora de mim!, porque, no fundo, I'm the great pretender, aquele que dá a ver o que querem ver os olhos da multidão; e não há quem imagine, nem nos mais inesperados sonhos [daqueles que povoam o sono vindos de um lugar desconhecido, com um propósito sem nome], com quem se cruza realmente quando calho de me encontrar no seu caminho. E nunca vai fazê-lo. Nem saber. Por tantas razões e por nenhuma que queira tirar de dentro do peito agora, que escrevo e mancho sem dó estas páginas.
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E, sim, há dias maus na vida de toda a gente.
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Aqui ao pé do vidro, Maio/'07

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Porém, não queiras o meu adormecer, o meu acordar ou até o meu conduzir solitário.
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10 comentários:

jumpman disse...

Dias maus.. Sem dúvida. Todos os temos e é impossível fugirmos deles. Simplesmente acontecem.


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Anónimo disse...

"Emudeci ao resvalar da dor lanciante, caída aos trambolhões do castelo da desilusão."

Nem Eça de Queirós. Nem Eça de Queirós.


Letícia

Anónimo disse...

lancinante*

not me disse...

A tua ultima frase fez-me pensar numa coisa engraçada, ou não!
E se podessemos trocar os nossos momentos de solidão uns com os outros?!
Seriam iguais?
;)

Raquel Branco (Putty Cat) disse...

Gostei.

E por isso, vou voltar!

Beijos

Anónimo disse...

Não queiras o adormecer da dor, o acordar da ausência nem a luta desigual contra a violência. E, não, há dias menos bons na vida de toda a gente.

Silêncio © disse...

Minha querida, como entendo bem "esses" dias...

Mas não te deixes abalar, pensa que o amanhã será sempre melhor...

Um Beijito

o alquimista disse...

O beijo da bruma com a água, é dança de dispersos sonhos, perdidos no silêncio desta baía, por longos e agrestes caminhos. Sentei-me! No peito ausência, a luz não tem hora, a paixão solta de amarras, que teima em não ir embora. Gira a vida em sua roda, invisível, celebro os dons da terra com a aurora, no espelho desta lagoa em arrepio, vejo um conhecido rosto que chora.


Bom fim de semana


Doce beijo

Angell disse...

Nunca deixes de fazer o que gostas; como escrever, ler e escutares os sons das melodias do mundo...

És tudo, menos um ser insignificante. Talvez dorido, desiludido, magoado, triste... mas lindo! :)

Os dias não podem ser sempre maus!

Fica bem, e muita força!

Bjs!

Idiota disse...

Gosto muito, sobretudo, desta parte:
«Afinal, uma gota é sempre uma gota e enche sempre o copo da mesma forma. Mas existe aquela gota que, fruto de quando surge e de ser aquela que é vertida sobre tantas outras já esquecidas e numerosas, molha a toalha.»