5 de junho de 2007

1 with U

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Perdi a conta às madrugadas em conversa ao som daqueles acordes escolhidos a dedo ou oferecidos, ao acaso, pelo rádio, cantado baixinho na noite escura e orvalhada; às ideias discutidas, às pequenas descobertas, confissões e confidências que surgiram vindas da espontaneidade de uma espécie de amizade despretensiosa que se erguia sobre a curiosidade sadia de duas gentes à parte. As conclusões, as dúvidas, os sorrisos adivinhados, os sons que dançavam no ouvido, os arrepios ao ver a proximidade na diferença, o sono que se impunha na noite já longa, os desabafos sem mais nada, esses e todos eles, na diferença que trouxeram aos crepúsculos feitos noite e depois quase manhã, recordo um a um. Conheço os contornos das palavras que ganharam corpo na frontalidade daqueles ruidosos pensamentos que as fizeram sair de nós. Reconheço-os pelo aroma, pelo toque, pelo timbre, pela cor, pelo agridoce que os tornou únicos, impossíveis de não querer agarrar.

E depressa perdi a noção do Tempo que foi passando, do reboliço que cresceu dentro desta minha cabeça inquieta e insaciável, sequiosa de tudo, incapaz de parar, serenar, descansar. Não me apercebi da passagem do Verão, do Inverno, do calor, da chuva, da neve, das flores da Primavera, dos primeiros frutos de nova estação quente. Não reparei nos segundos que corriam, imparáveis; passei-os entre sorrisos, lágrimas, descobertas, mágoas, festejos, perdas, silêncios de dor e tristeza inexplicável, incontáveis textos escritos à luz do velho candeeiro ou da Lua alta, num recanto do meu jardim aquecido pelo Sol que se deitara horas antes.

Perdi a conta às noites multicolores e a noção desse Tempo fugidio, na companhia de um olhar, um abraço, um perfume, peças de um puzzle humano inebriante, que um dia [e cada dia mais] se aventuraram sobre mim, quantas vezes tão próximos que apenas um contorno de nós sentia quando cerrava as pálpebras e viajava sobre tudo e todos, perdida em mil coisas sem nome, vagueando por mundos distantes, para, depois, regressar à certeza do calor daquele corpo que me envolvia. Em silêncio. Somente sorrindo ao ver-me regressar. Quiçá mais liberta da raiva, frustração ou simples tristeza e indefinição que me tivessem feito flutuar naqueles instantes. Aqueles em que dias sem nexo clamavam por isso mesmo; o silêncio entre ruídos conhecidos, as palavras não ditas, o estar sozinha acompanhada.

Chorei.
Sorri.
Adoeci.
Cresci.
Envelheci.
Perdi.
Silenciei.
Viajei.
Enlouqueci.
Experimentei.
Inventei.
Adormeci.
Despertei.
Ouvi.
Olhei.
.
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Não pela primeira vez.
Mas uma e outra novas vezes.
Porém, agora na certeza crescente de uma presença diferente, ali, à distância de um olhar, um sussurro, um pedido calado de ajuda; tão diferente na [nossa] semelhança e na oposição rica de tudo, que mente engenhosa alguma poderia ter maquinado propositadamente tão invejada partilha de estranhezas [tão nossas, quanto inexplicáveis] ou, numa palavra, cumplicidade. Na certeza, reconheço, da calma que consegui encontrar nos dias que desejei riscar da vida e que encontrei, afinal, naquele simples adormecer aquecida pelo respirar sereno sobre o meu ouvido, no bater compassado desse coração ambicioso dentro do peito em que repousei o rosto cansado. E que me observava enquanto dormia [ele e eu], porquanto o transcendente vê de olhos vendados.

A realidade deste Tempo que foi acontecendo? Uma espécie de nada veio de local incerto e ficou.

E agora? Toco ao de leve, desejo no silêncio, olho fundo nos olhos para ver e chegar um pouco além do óbvio. Sempre. E mais. O segredo? Gostar de uma forma tão simplesmente incrível, apenas isso e nada mais. De ti.

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«(...) Mas eles conseguiram-no, por vezes pisando os destroços do que parecia definitivamente perdido, mas seguindo em frente, quase com o desespero dos náufragos. Há anos que ela descansa o seu cansaço no ombro dele, que ele alisa o seu pescoço comprido, lhe apaga as olheiras e adormece com uns olhos azuis e ternos vigiando o seu sono.»

[Miguel Sousa Tavares, Não te Deixarei Morrer, David Crockett]

9 comentários:

jumpman disse...

Algo que chegou, não pediu para ser mais nem menos. Simplesmente foi crescendo e hoje é o que é.

E o segredo será sempre esse. Gostar de uma forma incrível, percebida por poucos.

De ti, sim. E mergulhar fundo no teu olhar e de lá não querer sair.


"I love when you do that hocus pocus to me.
The way that you touch, you've got the power to heal.
You give me that look, it's almost unreal. It's almost unreal."


***

Alma Nova ® disse...

E perdes-te do Tempo, num tempo sem tempo de magia e cor, em que os acordes simples da madrugada te fazem viajar de flor em flor. A cumplicidade cresce e o Amor acontece. Jokitas.

Anónimo disse...

O Segredo? esse é ter tempo para ver, sentir, desejar e amar. Tudo o resto é pura perda de tempo.
Esse que deviamos saber viver, disfrutar o curto intervalo que a Morte nos deixa...

Kolmi
Maria

Silêncio © disse...

O Segredo é aproveitar o tempo que se tem de amar...
A vida é tão curta, que devemos aproveitar até a última gota.

Um Beijo em Silêncio

Angell disse...

Devemos de amar enquanto podemos, e tentarmos ser felizes; enquanto a vida nos permita! O segredo da nossa verdadeira existência... :)

Bjs!

Idiota disse...

Perguntinha...(Idiota)

«Gostar de uma forma tão simplesmente incrível»... O que é a forma é sómente a forma? e incrível? é somente a forma ou existem colagens de atributos não visuais a toda essa forma???Ou será que não passa disso mesmo a carne fraca mas por vezes apetecível e deslumbrante?

(E óbvio para quem?)


Texto lindo :)

Maria José disse...

Muito mais do que, senão mesmo ou, mais sinceramente, certamente jamais, carne fraca apetecível e deslumbrante.

Lá está.
Uma cumplicidade impossível de explicar. E por tantos não percebida. Mas que existe. Que vivo todos os dias. E me inspira quando muito de tudo o resto se desmorona perante mim.



No fundo, todas estas palavras só fazem sentido real e exacto, para duas pessoas. E não precisam de ser o fazer para mais ninguém.

Anita disse...

Maravilhoso livro!

Idiota disse...

OK, parece que compreendi. Descreve-se como se se pinta-se um quadro. Não para explicar as cores ou sítio mas para simplesmente dar a conhecer aquela "imagem"...

«E não precisam de ser o fazer para mais ninguém. »
Se fazem para alguêm decerteza que fará para mais pessoas...
Fico feliz por teres ou viveres algo que me parece que te deixa feliz...