23 de maio de 2007

À luz dos morcegos


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Devagarinho chegou a chuva, caindo tímida a princípio e depois mais e mais forte, batendo imponente nas paredes da casa que abrigava este corpo. Mesmo sem olhar lá para fora, sabia a cor do céu que me seguira horas antes [enquanto caminhava com destino e sem objectivo], carregado de gotas espessas, suspensas no alto do que a vista alcança pelo quente e abafado ar da Primavera confusa. Sabia, porque dificilmente outra tonalidade teria coragem para se impor ao chegar a hora da Lua, aquela em que, com um tão escuro pano sideral, gosto de sair por uns momentos. E então seguir o miar esganiçado dos gatos sem casa, caminhantes silenciosos nas ruas enlameadas, atulhadas de pétalas caídas, maceradas pelos passos inominados, irreconhecíveis pela água vertida lá de cima, turva, longe de cristalina. Habituar o olho claro [protegido pelo pára-brisas humedecido] ao nevoeiro incipiente, para então reconhecer as formas inumanas encostadas a muros baixos e postes frios de cimento, aguardando o [pouco] que lhes reserve a escuridão da madrugada vindoura, desejosas de ocultar o desespero e o vazio que lhes cresce no peito [e transparece nos olhos inchados pelo tempo impiedoso, pelas lágrimas dessalinizadas, pelos sentimentos confundidos]. Ouvir, ao longe, um uivo lancinante de dor; o pedido de ajuda de um animal ferido depois de esquecido pela indiferença de um Homem [cujo H lhe negava se pudesse], entregue à sorte das ruas movimentadas, da fome atroz, dos becos sem luz nem recantos abrigados da dureza do orvalho ameaçador. Pressentir perto, muito perto, o mundo real.
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4 comentários:

Anónimo disse...

Algures li esta frase:

" A vida é simplesmente um breve intervalo que a morte nos deixa usufruir."

Como tal acho que a devemos viver atentos como dizes:

"Pressentir perto, muito perto, o mundo real."

Beijitos

o alquimista disse...

No espaço intermédio entre o sublime e o esplêndido estás...tu...

Os teus pés são navegantes na espuma, o teu cabelo dança em descuidada ironia, suave viagem de ondulante onda em tua boca, duas sílabas sopradas em mágica melodia.

Mágico beijo

Chris disse...

Os dias de chuva têm algo de especial!!
Pena são as injustiças que se escondem sob as gotas de chuva! :\

Beijo Grande

Angell disse...

Para muitos a vida passa ao lado; as desgraças alheias em nada os tocam. Para outros, sensíveis e humanos; sofrem com o que não está bem neste mundo. Esses fazem a diferença... :)

Bjs!