19 de dezembro de 2007

Correio azul marinho

Se fosses embarcar numa viagem sobre carris, daquelas diferentes da maioria das de hoje, onde se cruzam montes e vales, rios e lagos, chuva e sol, no comboio outrora a carvão e hoje veloz e silencioso, dir-te-ia para olhares pela janela. Seguires os postes que passam depressa, um pássaro errante no céu que o teu olhar alcança. Fixares por momentos esse mesmo olhar num arco-íris inesperado, quando a chuva toca o ferro e aço da carruagem, mas também o chão verdejante das planícies; quiça consigas ver o pote de ouro lá ao fundo. Perderes-te dentro de ti ao som de uma música qualquer tocando perto do ouvido, como sei que acontece quando o sentimento e o pensamento não te deixam dormir. Fugires então do banco aveludado onde seguisses sentado, sentindo a dor da lebre abatida enquanto o teu comboio avançava na floresta, a confusão da criança perdida na feira daquela vila que cruzaste sem notar, a dor que te cresce no peito e afunda o sorriso.
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Voando antes sobre cidades e matas, funde-te com cada vulto nos aeroportos movimentados, entrando no seu eu, tentando percebê-los e entender-te. Mergulha no betão das cidades, toca a argamassa do símbolos de tempos longínquos, inspira o ar dos jardins esquecidos e redescobre os ícones, perde-te enquanto escutas acordes levados de casa e desenhas com os dedos as pinturas um dia sentidas e esculpidas na tela e no azulejo. Sim, perde-te como sei que errante está uma alma esquartejada; estilhaçada e sozinha entre muitos, que jamais tocaram a superficie do seu imenso oceano de emoções e perguntas. Ah, tantas perguntas e respostas que se evitam, procuram, contrariam, desejam. Mas que sempre agora ferem. Muito. Demais.
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Deslizando sobre rodas no asfalto quente do Sul, digo-te que observes e absorvas as maravilhas invisíveis aos olhos do viajante prepotente.
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Na pequenez que vês no espelho e sentes na pele, digo-te: isola-te um pouco se assim o teu coração pedir. E cresce outra vez devagarinho.
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Não precisas sorrir, fingir, imitar. Uma fotografia aqui, uma descoberta inesperada acolá, um sono atribulado num quarto diferente, um amanhecer esfomeado, relançar-te-ão. Lentamente, a um ritmo que não sei se tem igual. E se o não fizerem, deixarão pequenas cicatrizes na memória que um dia recordarás e talvez queiras ver melhor. Sozinho. No teu quarto. Longe já do comboio que só viste correr distante, das asas pesadas que sobrevoaram o mundo contigo, da borracha que chiou numa curva apertada. No silêncio ruidoso de ti. Aquele que te traz os pensamentos à ponta dos dedos. E aos olhos.
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Talvez alguém os veja depois aí espelhados. Se estiver atento. Ou perceber, apenas e logo ao vibrar do ar num teu piscar de olhos.
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Boa viagem.
Contigo. Com os teus fantasmas. Com quem levas no coração.


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5 comentários:

Anónimo disse...

É perda de tempo pedir a uma alma míope que veja o sentimento artístico lá ao longe.

Boa noite!

jumpman disse...

Uma viagem que se perfila num horizonte muito perto.
Viagem onde levo tudo comigo, os fantasmas e quem tenho no coração. Que me ajuda sempre a combater esses fantasmas.

Sempre.

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Brain disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Brain disse...

Mª José,

Comecei a ler o texto e a determinada altura seleccionei um bloco com o qual pretendia fazer o meu comentário.

Depois continuei a ler e o texto foi entrando fundo, entrando em mim até ao meu âmago e revi-me.

E este texto, tão bem escrito, tem simplesmente o espelhar de um ser, no qual me revejo em pleno.

Este teu texto, Mª José, é todo um meu "eu".

Não sei se o escreveste para alguém específico (estou em crer que sim), mas de qualquer forma, se não te importares, vou imaginar que o escreveste para mim. Posso? Apenas na minha imaginação? Obrigado.

Um Carinhoso Beijo,
E se não nos falarmos antes,
Um Feliz Natal!

Anónimo disse...

Viagens, fugas, interrogações...
Será aprender ou simplesmente esconder...
Fantasmas, vultos, dúvidas, essas matam...