12 de março de 2007

De rajada

Nunca foram brinquedos que me seduzissem: as bonecas... artificialmente sorridentes e seus vestidos finos e distintos, ou cabelos grandes e sedosos. Delas apenas queria conhecer as entranhas, descobrir o mecanismo que lhes dava movimentos quase humanos ou usar os suplementos com que as vendiam, de forma bem mais imaginativa [piscinas tranformadas em tinas de cientista louco e limusines desmontadas para daí nascerem novas maravilhas de engenharia...]. Brincar às mamãs? Preparar cházinhos imaginários e servi-los aos peluches inanimados e às minhas amigas? Não recordo tardes passadas nessas andanças. Preferia fazer operações às bonecas de trapos, suturar-lhes a pele de tecido e tratar-lhes assim da saúde [no bom e real sentido, entenda-se!]. Cozinhados? Tachinhos? Recordo apenas, e desde que me lembro de ser gente, as experiências [autênticas misturas explosivas] com champôs, sabonetes, cremes, detergentes... na tentativa de encontrar aquela proporção exacta que rebentasse com a tina, cuidadosamente colocada ao Sol.
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Apanhar florzinhas no jardim cuidado do colégio? Devia estar a jogar à bola, a correr contra algum colega que me desafiara ou praticando os malabarismos [que devia restringir ao ginásio, segundo a treinadora inflexível] nos corrimões dos patamares das escadas do recreio, porque não tenho memória de mim em tais práticas de jardinagem. E as mil e uma desculpas de adolescente para ficar sentada no banco suiço do ginásio? Apenas as conheço de ouvido. Nunca as disse. Nunca as pensei. Nunca as senti. Tanto melhor era correr, saltar, jogar...
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Vestidinhos cheios de folhos e rendas e fitinhas cor-de-rosa? Não era eu, CERTAMENTE.
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Temer as formigas e as abelhas? Ora! Gostava, isso sim, era de caminhar entre os rebanhos [fazendo de cão-pastor e correndo com ele em círculos certeiros], visitar as panteras de olhos brilhantes, tocar nos esqueletos gigantescos dos répteis de outrora e deliciar-me com as iguanas de agora, ali mesmo, ao estender de um braço, olhando maravilhada os crocodilos bebé brincando ao pé do meu regaço.
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Cadernetas e cromos de artistas de telenovelas ou de desenhos animados sem interesse? Preferi os livros e aquele tacto inigualável do papel. Preferi as histórias, as ilustrações em volta das letras e a ginástica do pensamento. Já nem falo das revistas cor-de-rosa e das intriguices sem interesse. Adivinhava-lhes falta de substância e refugiava o pensamento [e o sentimento] noutras leituras, noutras línguas, noutras experiências. Noutros Tempo e Lugares.
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Não gostava das [chamadas] mesmas coisas, convivia com gente grande e pequena gente do meu tamanho, escutava e observava tudo ao meu redor. Perscrutava os ambientes e as pessoas. Aprendia tudo quanto podia, não podia ser menos do que pudesse ser no máximo. Movia-me discretamente em todos os sítios, fossem estreitas passagens ou largas avenidas. Viajava e conhecia os recantos do mundo, apreciava a música, gozava da companhia das Pessoas mais incríveis e moldava o meu ser sob sua protecção.
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Senti a dor de caminhar na margem, a amargura do engano, o orgulho do elogio, o calor do Sol onde brilha como em mais nenhum lugar, a magia de ser confidente, nem que por instantes. E em tudo... a companhia de uma caneta e um pedaço d e papel.
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E... então?
Isto não é nenhuma biografia nem tão-pouco uma crítica, reflexão ou desabafo. Quiça se um dia uma espécie de nada transfigurada e lida como prefácio de um livro ainda sem páginas. Porquê? Antes para quê.
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Para que não perca tempo com as demais páginas, quem renegar as primeiras linhas.
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6 comentários:

Jo disse...

WOW!

A vida pode mesmo ser vivida de diferentes prismas....nada como perseguir o nosso eu e levá-lo ao expoente máximo, essa sim deveria ser a nossa mais verdadeira demanda.

Escusado será dizer que adorei o texto.
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Anónimo disse...

Belíssimo texto amiga, sem dúvida e complementado por um excelente comentário da Janita, mais palavras para quê, vocês disseram tudo e bem...ainda bem que existem pessoas assim neste planeta que vai ficando cada dia mais árido e seco de sentimentos.
Beijitos,
Maria

Alma Nova ® disse...

Engraçado como ao ler este teu texto me revi na descrição da tua infância e da inutilidade que encontrava nos cházinhos e roupinhas de bonecas. Como eu preferia correr e saltar ao sol, andar de patins ou jogar à bola. E, nas tardes de chuva, me refugiava num canto qualquer e "devorava" os livros que apanhava por perto. E a tua companhia...a caneta e o pedaço de papel...também foram muitas vezes as minhas companheiras quando, já adolescente, olhava à minha volta e tantas vezes não entendia o que via. Jokitas.

stela disse...

Pois é :), afinal parece que há muitas mulheres iguais às diferentes :) eu também gostava das bonecas, para lhes cortar o cabelo que nunca ficava certo, por isso tinha uma colecção de bonecas carecas! :) Andar de Patins, bicicleta e jogar ao bola era a felicidade extrema do Verão! Inverno? era mesmo para ler enrolada numa manta e a comer rebuçados! :) entendo-te bem...
beijinho

jumpman disse...

:)

***

Angell disse...

Cada um é como é! Não é por termos nascido neninas, ou meninos; que gostamos de brincar mais com este ou aquele brinquedo! Eu lembro-me de andar com chapéus de cowboys e adorar o som das pistolas. De brincar com puzzles, correr atrás de ovelhas; andar de bicicleta, subir montes de fardos de palha (o pior era depois dexer!). Ler muito e inventar tantas histórias no papel. De peluches sempte gostei; tive poucas bonecas e não estraguei nenhuma... ficavam sempre no canto delas; e eu no meu! :)

Bjs!