Vou contar-te uma história sem princípio que lhe conheça, porquanto esfumado no tempo, nem remate cor-de-rosa [ou de outra qualquer cor, na verdade].
Uma narrativa daquelas que se fazem uma vez, sem reflectir no ouvinte ou nas palavras.
Uma narrativa daquelas que se fazem uma vez, sem reflectir no ouvinte ou nas palavras.
Voltando os olhos e olhando esta data [ou algo aproximado, já que a exactidão dos momentos apenas de nada serve], uns trezentos e sessenta e cinco dias atrás, mais coisa menos coisa, fico presa numa vida diferente. Diria mais, num Eu cento e oitenta graus oposto ao que agora se enterra neste grande sofá ao som da chuva revolta lá fora. Gotas frias caíam também no chão lavrado do jardim, numa Primavera um tanto invernosa, como todas as que já fui começando a tratar por tu, porém o cinzento limitava-se às nuvens altas. Apenas um fiozinho de preocupação ensombrava o meu pensamento e, por vezes, apertava, sem dó, o que sentia. Uma espécie de incerteza, receio, apreensão; uma qualquer indefinição enevoada que toldava, por instantes, o sorriso simples e imediato, contudo rapidamente dissipada pelo querer. Um querer e acreditar tanto em poder ser tudo, sem impedimento possível, capaz de ultrapassar o caracol onde viajava essa dúvida do sempre possível falhanço.
Afinal, vinha lá de dentro, de onde nascem as vontades e os desejos, uma determinação imparável, autêntico combustível eterno alimentando a ambição, quebrando barreiras, impulsionando cá fora o que fazia; tornando o muito bom óptimo, transformando o óptimo em excelente e fazendo-me acreditar nas palavras sentidas que escutava e via nos olhos dos alguéns que me falavam, com sinceridade e verdade.
Afinal, estava capaz de tudo. Vivia o fim de muito [um capítulo extenso de um livro repleto de emendas, reticências, sorrisos sem dissimulação], temia, por vezes, o próximo princípio, porém sempre com um desejo imenso de devorar cada instante daquele presente e, porque não, passado de experiências e [muitas] batalhas ganhas.
Fixando os olhos agora neste hoje chuvoso, muito mais cinzento pressinto do que aquele que se detém sobre os prédios desta cidade de granito. Desiludi-me a mim própria, desgostei-me sem culpar terceiros, arruinei a possibilidade de ser mais do que a maioria sonha e uma minoria consegue, mas que pensava ser capaz de alcançar. Vã crença, esfumado desejo, falsa realidade em que acreditei desde que me lembro de pensar. Já não há acordares para dias em busca de suplantação do que fui e fiz nos precedentes.
Afinal, uns quantos momentos num passado ainda presente, bastaram para que atirasse à minha própria cara a fragilidade das minhas crenças, as limitações de ser nada mais do que mais um entre muitos [em nada melhor nem pior, somente mais um].
O que ficou, sem rodeios nem divagações, foi uma dor, uma mágoa e desilusão que arranjaram morada no mais profundo do meu peito. Para sempre, não tenho dúvidas.
Jamais saberei explicar verdadeiramente o peso de cada lágrima que me fugiu no refúgio de mim própria, porque não há palavras e porque não há, na realidade, muito para expor a quem não sou eu. Pela dor que vi nos olhos dos poucos que, impotentes, tiveram a infelicidade de ouvir um pouco dessa tristeza, por não tolerar senti-los confusos na surpresa de me escutar, serena e pausadamente, admitir a banalidade do que posso ser e fazer, usei da inteligência que me resta e decidi que tudo não será mais do que uma recordação minha. Viva num lugar escuro de quem sou, mas escondida dos demais. Porque mais do que ter uma ferida que não mais fechará, corrói-me ver alguém além de mim, preocupado com uma doença sem cura.
A realidade é agora outra. Tudo não passou de um sonho ambicioso alimentado de todos os cantos ao longo de um quarto de século, que terminou. Mais do que algum dia imaginei, quebrou os meus alicerces julgados inabaláveis, confrontando-me com uma nova necessidade: continuar a crescer sem o que me enchia o peito. Resta-me dizer adeus e desejar bom resto de viagem ao que perdi, contentando-me com o que ficou.
Fim da história.
6 comentários:
Viver um novo dia é sempre morrer um pouco...algo fica para trás, mas o que importa é a certeza de que também algo de novo virá. Quando vemos um sonho morrer, morremos com ele, uma parte de nós desaparece e parece-nos que nunca mais ficaremos inteiras. Mas o tempo ajuda a reconstruir o que se desmoronou desde que se continue a acreditar que Sonhar é Possível. Força, amiga...e acredita que tudo sempre é possível, acredita em ti própria e não te limites a contentares-te com as sobras que ficaram. Tens direito a Tudo! Jokitas.
Crechemos com a esperança de que iremos concretiar os nossos sonhos. Que de tudo somos capazes. Por vezes a vida não deixa isso acontecer. Outras vezes somos nós que mudamos, e outros desejares surgem. O importante é sermos verdadeiros conosco próprios. Procurarmos ser felizes! Continuarmos a tentar alcançar o que sempre nos motivou e; não perdermos a fé em nós e na esperança de o alcançar! :)
Bjs!
Conheço a dor que está encerrada em cada palavra.
Mas também acredito, que num tempo não muito distante, uma história nova será escrita.
***
quis escolher um pedaço do texto, mas não consegui. Todo ele me tocou, todo ele me disse algo. Algo que também eu trago cá dentro....talvez por outras razões, é certo.
beijinhos
Que bem que escreves, apesar de ser a dor que descreves...
Ainda não tive oportunidade para ler os outros, mas garanto-te que os irei ler (:
Beijo enorme saudoso (:
A ambição é o alicerce da realização pessoal daqueles que são minimamente dotados da faculdade da inteligência. É normal!
Não tão normal, porém, é a sensibilidade literária que tu expressas. Se o tal sonho ambicioso se tivesse tornado realidade, o teu dom (a forma com que tratas as palavras, desprovida de qualquer fórmula de cortesia, a qual, ao fim e ao cabo, não existe quando se conhece o interlocutor) ficaria, sem sombra de dúvida, adormecido, e não haveria deleite por estas bandas.
Pelo simples facto de, na concepção de uma obra de arte, o artista e a pena moral serem indissociáveis.
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