4 de abril de 2007

Passagem de umas folhas que escrevi

Era um casaco pesado, carcomido pela traça, os cotovelos já bem marcados nas longas mangas outrora de um preto retinto, aquele que cobria uma figura de mulher, descuidadamente sentada no esguio banco de pernas altas, igual a tantos outros de outros tantos bares de terceira categoria. Sob uma luz sem cor definida [oscilando entre o vermelho sangue e o amarelo doentio], os seus contornos fundiam-se com o fumo dos cigarros, esquecendo-se de que, noutros dias, de um tempo diferente, compuseram uma acompanhante de luxo. Sentada ao fundo da sala, pestilenta pela mistura de odores – dos charutos baratos ao whisky mal destilado –, sentia no ar o perfume sem nome dos homens doentes e sem graça, o odor forte dos baralhos de cartas bolorentos, o calor de um compartimento pouco arejado que vivia de noite e se arrastava pelos dias.
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Diante das mãos envelhecidas [já não desfrutava de um creme fino havia mais tempo do que gostaria de ter visto passar], um copo a meia carga que observava desde que lho entregaram, bruscamente, sem maneiras. Perscrutava, de si para si, sem sequer mexer um músculo, respirando pausadamente, os caminhos já percorridos, os sabores mesclados de quando gostava de si, os magníficos serões na luxúria e opulência de suites requintadas. Por instantes, percorria o passado e regressava, a pique, ao presente. Arrepiava-se ao reparar nas roupas gastas e sem brilho que exibia, enojando-se da maquilhagem irritante que já não dispensava [vã tentativa de encontrar cor onde apenas tinha morada o negro da apatia]. E mais se perdia no líquido amargo, quando, das colunas bichentas com fios traçados, pressentia os versos conhecidos de uma canção vinda de outra vida… Ou desta.
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Who oo am I, what and why
Cos all I have left is my memories of yesterday
Ohh these sour times.
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Quem era e como se perdera? Apenas uma história viva e controversa, vagueando sem saber que se distanciara de casa.
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3 comentários:

Angell disse...

Perdas de identidade, de ser, de esperança, de respeito, de carinho, de amor... Um intenso sabor a amargo de uma vida, que embora outrora intensamente vivida, perdeu-se pê-lo caminho. Uma velhice anunciada com solidão, amargura, sem esperança, sofrida.

"Quem era e como se perdera? Apenas uma história viva e controversa, vagueando sem saber que se distanciara de casa."

Triste, mas a realidade pode ser assim. Tão dura, tão cruel; que doi severamente nos peitos de quem a assim vive!

Bjs!

Anita disse...

Por vezes perdemo-nos sem saber de onde viemos e como fomos ali parar...o importante é que não percamos o rumo por completo, para podermos, ainda que com dificuldade, voltar ao que sabemos ser!

jumpman disse...

Quem sabe, se à espera de reencontrar o caminho perdido até casa..


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