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Enchi-me não sei bem de quê, porque coragem não seria e ousadia pode muito bem ser mal interpretada, mas fi-lo. Hoje, ali sentada, ainda no silêncio quebrado por meia dúzia de beatas amarguradas. E, curioso, sem duvidar da minha fé, berrei naquele silêncio, muito embora só Tu devas ter ouvido e, na verdade, não me tenha preocupado de especial maneira com o que a assistência azeda pudesse ou não perceber nos meus olhos. Berrei bem alto e questionei o que fazia aquela gente já com décadas e décadas em cima dos ombros, calmamente respirando ao meu lado, queixando-se das artroses e do Sócrates que lhes não dá mais pão, gastando porém os tostões em água de marca e croissants para o pequeno-almoço do gordo e inútil que as insulta todos os dias, seja pela sopa esquentada ou pelo simples prazer de fazer notar a sua nojenta masculinidade, nunca tendo tão-pouco acariciado os petizes que, um dia há muito perdido, lhe chamaram pai. Sim, perguntei-Te o que faziam eles ali, bajulando no sossego da Igreja, e porque Tinhas deixado partir inesperadamente o jovem saudável que te tinha entregue para Apadrinhares no Baptismo, o fruto perfeito da sua vida, apenas dias antes. Como? Como pode ser? Enchi-me talvez de raiva, sim, uma raiva imensa e revolta ensurdesedora, olhando-Te desconfiada da justiça desta vida. Não consegui zangar-me o suficiente para Te esquecer ou renegar, mas não perdoo esta morte que deixou um vazio demasiado grande em tantas vidas! Não é talvez suposto perceber, não sei se apenas agora ou se é condição permanente nesta vida humana e carnal, mas o que se diz ao bebé que sorri, que jamais verá o pai de novo quando chega a hora de ir dormir? O que se diz no abraço apertado à companheira para a vida, que vê a morte chegar cedo demais àquele que jurou no coração para sempre amar?
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Com os bisavós de noventa anos que não consigo manter vivos, mas que creio que posso até ter salvo de vida que não é já vida, apenas um respirar instável entre escaras, corção massacrado pelas doenças e cérebro há muito cansado e vazio do que os tornou Pessoas, com esses e a sua morte eu vivo. Mas não me peças para ser mais do que humana e para aceitar que o desportista, pai e amigo, possa deixar este mundo aos trinta anos traído pela doença que me martiriza enquanto médica - por ser indiagnosticável, intratável e dizer estou aqui apenas no momento em que rouba a vida, consolando-me que o faça tão súbita e matreiramente que não traga consigo dor nem tempo para pensar o que vai ser de mim.
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Isto berrei na minha língua mortal, certa de que também Deixaste este mundo por nós sem pensar na idade... porém incapaz de me conformar com o sofrimento, as lágrimas que nos correram pela face, quando se fez silêncio e os motores que apaixonaram o teu agora servo no Céu, choraram até que desaparecesse na terra fria e novamente se fizesse silêncio. Um silêncio de morte.
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Podia ser eu... podia ser aquele que mais quero comigo até ao fim, na velhice... acabei sussurando ao Teu ouvido. E arrepiei-me. Uma lágrima espessa escapou-me uma vez mais, perdida em sentimentos, desnorteada no rumo a dar à minha vida. Porque a deles, acabou há poucos dias, poucos dias também depois de te terem entregue com o mais sentido Amor, a vida que geraram.
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