4 de dezembro de 2006

Sem caneta

Não me digas nada, não olhes nos meus olhos, não me dirijas qualquer palavra. Não quero um boa tarde ou boa noite. Tão-pouco quero que perguntes o que se passa, se acordei do lado errado da cama, se queimei as torradas ou derramei o leite ao pequeno-almoço. Não quero ouvir qualquer som. Espero ansiosamente que os ruídos se calem, que tudo se encha de silêncio e nada me acorde.

Quero apagar as folhas e rasgar todas as frases que se articularam no meu pensamento, onde morreram antes de pisar a tinta da caneta. Porque não valia a pena que continuassem a sonhar. Quero queimar as linhas que nascem nestes instantes em que a chuva bate na portada, com força. Quero que as não volte a ver o meu olhar, porquanto lhe recordam as irmãs há tão pouco abafadas num mundo que ninguém vê.

Quero…
Não quero já nada. Mal do escritor? Devaneio do artista? Seja.
Seja uma noite longa esta que não acaba, seja um dia quente ou uma madrugada orvalhada.

Seja o que for, não quero saber. Este medo escuro não tem rosto e não tem explicação. Não tem o sentido que podia ter, nem o que se pensa conhecer quando se admiram os seus contornos do lado de lá da vitrina. Estes medo escuro e desejo egoísta, utópico, etéreo, habitam um corpo sem morada. E não tarda vão escolher outro sótão abandonado. Um diferente daquele cujos recantos não me assustam nem entristecem. Afinal, adormeci junto das suas teias ao longo do tempo.

Não me digas nada. Quero nada e uma almofada. Não para dormir. Somente para deitar a cabeça. Quiçá abafar um sussurro em língua nenhuma.
.
.


E assim se foi.

2 comentários:

jumpman disse...

E não irei dizer muito.

Fica somente o desejo que tenhas conseguido deitar a cabeça e abafar esse sussurro que atormenta.

***

(and maybe it was just a bad day. just one bad day..)

Jo disse...

"E não tarda vão escolher outro sótão abandonado"

Pode ser que sim. Pode ser que assim consigas ter o nada que queres em ti e dormir sem quaisquer sons a atormentar-te.

****