22 de novembro de 2007

Memórias

Era um daqueles caminhos longos, serpenteando no meio da vegetação rasteira, perfumada de mil odores que subiam no ar e adoçicavam o sol nascente. Um trilho galgado por gente sem nome nem destaque, desenhado na terra solta da montanha num tempo que a memória já não lembra, tornando mais próxima a aldeia eregida lá no fundo, no vale verde e orvalhado, e as pastagens íngremes que engordavam cabras e ovelhas de olhos vivos; aquelas que eram um desafio alcançar para pequenos guardadores de rebanhos, que corriam estrada acima e nem parávam quando o asfalto desgastado dava lugar ao caminho sinuoso, antes orgulhosamente guiando os animais que uma mãe atarefada lhes confiara.
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Era um daqueles caminhos ladeado, aqui e além, por pedras grandes e redondas, invejáveis pontos de paragem para recuperar o fôlego, abrir o saco da merenda, deitar o olhos, de esguelha, ao rebanho matreiro e apreciar as árvores, campos, rios e cumes a perder de vista, até o dia arrefecer, o Sol descer do ponto mais alto do céu e ser tempo de reunir os animais.
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Um caminho que, ao entardecer, iluminado pelos raios caídos de um Sol mais fresco, guiava os pequenos pés dos pastores até casa. E aí, mesmo antes de entrarem na cozinha inundada pelo cheiro do pão acabado de fazer e da sopa que ganhava novas cores sobre a lenha crepitante, despediam-se de cada cabra e ovelha ensonadas com um "até amanhã e durmam bem; vou agora eu descansar no colo da minha mãe".
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O caminho que a menina rica da cidade aprendeu a conhecer quando se refugiava no silêncio da distância. Para assim perceber a real dimensão do mundo.
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6 comentários:

Anónimo disse...

E quando a vida nos coloca no caminho pessoas como Tu, com uma sensibilidade enorme, tanto como a noção de realidade e justiça, que mais podemos exigir da vida?
Só mesmo viver na companhia dos nossos amigos, estejam eles na vida diária ou na virtual.

Alma Nova ® disse...

E é nestes caminhos reais que aprendemos a conhecer a vida e que tantas vezes nos trazem pessoas com a tua sensibilidade e com o mundo a saltar pelos olhos e bem guardado no coração

Afonso Faria disse...

memória? Património!!!
Riqueza de quem vê, sente vive!
Gostei!

Oliver Pickwick disse...

Admiro a sua capacidade de descrever paisagens - como a deste post, por exemplo - a riqueza de detalhes, o ritmo elegante da linguagem e, sobretudo, empreendendo um tom passional, e ao mesmo tempo tocante à descrição. A "sua" paisagem, por si só, "conta" a história.
A propósito, o conceito de cinema que deixou em meu blog, foi um dos mais precisos e emocionantes que já vi.
Continue com esse interior sensível.
Ah, ia esquecendo, gostei da nova foto do perfil. Humm... You're looking good!
Um beijo, tenha a melhor das semanas!

jumpman disse...

Uma memória que muitos dariam tudo para poder chamá-la sua.

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Anónimo disse...

Bem depois de ler tão boa descrição, pode recordar os caminhos de Santiago, e sobre todo aquilo que senti enquanto os percorria!
Estava em duvida se deveria passar a ultima semana do ano a caminhar para Santiago mas agora sei que o vou fazer!