Há muitas histórias para contar. Algumas conhecidas, mas sempre e cada novo instante, com a novidade das palavras renovadas. Outras, longe do inteligível, totalmente misteriosas, envoltas na aura da primeira vez que dançam no ar, pousando lentamente no ouvido atento.
Histórias tantas como a gente, porque é a gente que lhes dá corpo e sentido aos pormenores. E, afinal, porque é da gente, das horas que vive e daquelas em que morre pelos recantos sujos da marginalidade imposta, que se constróem.
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Manhãs frias de Inverno, lembradas por caminhadas ao pé da areia, de cabelo desalinhado e casaco bem apertado, afastando, sem sucesso, o arrepio ao toque pelo salpico de mar.
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Almoços demorados na varanda sobranceira ao rio, escutando um burburinho melodioso de aves de canto selvagens, degustando um vinho das melhoras castas; aquele que desenha mil cores nos copos cristalinos, tendo repousado na frescura da adega anos a fio de amadurecimento.
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Corridas, caras afogueadas, livros por vezes espalhados pelo chão. Tudo para não deixar fugir a camioneta que deixava a terra no final da madrugada; esse milagroso contacto com a cidade, onde dormitavam naquela hora e meia de viagem, os homens da fábrica de porcelanas (coitados, tinham que atravessar toda a metrópole e só depois avistavam, se já acordados, as chaminés altas do grande complexo industrial), as anafadas senhoras da limpeza do hospital, a jovem mãe desempregada, de petiz constipado nos braços e um jornal cheio de rodinhas vermelhas e cruzes negras dobrado na carteira, a estudante universitária. E como estava perdida em pensamentos esta rapariga de contrastes, olhando pela janela para o Sol nascente, imaginando os dias e criando memórias que gostaria de relembrar, quando as rugas fossem a regra e não a excepção no seu rosto queimado pelo Sol dos campos.
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Guinchar de pneus, cheiro nauseante a borracha quente, fumo subindo no ar, fim da lembrança. Álcool? Velocidade mal calculada? Sono? Falha mecânica? Pouco importa. A pancada fora forte e nada preocupada com os porquês e ses. À chegada àquela sala com luzes artificiais, monitores de PVC, PIC, PA, FC, FR, SatO2 e gente com batas azuis e máscaras verdes, dando e recebendo instruções, o sono ameaçava apoderar-se de cada pedacinho da sua vigília. Sons poucos familiares ecoavam a cada instante mais longe e as cores fundiam-se num cinzento esbatido. Pensar era difícil. Recordar a namorada acordava as lágrimas. Mas o sono era tanto. E ganhou. Escureceu num momento e os sons silenciaram-se, os olhos cerraram-se e aquela cara perfeita que vivia dentro de si, confortou o descanso que o corpo partido pedia. Para sempre.
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Chocolates derretendo sobre o calor dos corpos. Banhos à meia luz em aromas de outro mundo. Doces gelados que escorriam pela colher única que partilhavam. Eram dias para esquecer o mundo e viver entre-mundos, por assim dizer. Ao sabor dos silêncios, repousando entrelaçados ao cair da noite, esperando pelo sono que lhes unisse os sonhos, afastasse os pesadelos e deixasse acordar não com dois, mas com um novo perfume. Na pele. No olhar. No desejo.
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Há tantas histórias. Tanta gente. Tantos lugares. Há tantas linhas por escrever. E tantas lágrimas contidas no desespero e na alegria.
Um dia... talvez.
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