28 de março de 2008

Asfalto

.
.
Percorrem-se passadiços, ao frio; caminhos ainda verdes de acrescentos, sem margens coloridas, perto da água revolta, dessas pequenas ondas emprestadas pelo mar ali ao pé.

Caras de muita gente diferente, correndo, brincando, dormitando, vagueando, cruzam-se no nosso caminhar e lembram-nos que há vidas para imaginarmos, por detrás do ar carrancudo ou prazenteiro dos seus rostos.

Existências que não vêem os mesmos contornos que nós.
.

23 de março de 2008

Linhas

Este é o teu capítulo no meu livro. São as primeiras palavras do texto. Parte da história, contada na sombra das outras páginas. Parte da história do respirar, olhar, ver, sentir, ouvir, escutar, tocar, acordar, adormecer, saber e esquecer, que fazem de um corpo, um humano e de um ser assim, uma pessoa. A parte da história que construí com os pedacinhos quer recolhi de ti. E que é a calma e o reboliço; uma tão grande tempestade de silêncios e novidades de todas as cores... E há as mais brilhantes e a outras. Não gosto das outras. Fazem-te ficar de olhos tristes e perdidos, vagueando no mesmo sitio, envolto na penumbra da dúvida, esquecido no canto escuro da rua sem nome. Por isso não gosto delas; das outras cores das novidades. Mas quero guardar todos os vestígios da tua passagem seja por onde for, para poder sempre renovar esta história e contar, pelo menos, parte dela nas entrelinhas das minhas páginas escritas. A outra parte e esta também, no fundo, será para sempre vivida numa dimensão que talvez um dia seja percebida. Talvez. Quem dera.
.
.
A certeza? Há uma escritora sobre o teu ombro. Até ao fim.
.

22 de março de 2008

Despertar


O que vejo daqui são umas nuvens escuras, mais do que o azul que espreita brilhante de permeio, sem dúvida, que querem chover e molhar o chão por baixo dos meus pés. Umas nuvens também geladas, dispersas por cima da minha cabeça humedecida por uns quantos pingos irreverentes que se desprenderam e chegaram cá abaixo. Um céu que, posso dizer, vimos por esta altura certamente de todas as formas; assim soturno, imensamente denso de estrelas no pico do Verão, ou tão-somente infinito como sempre.
Acordo e ouço os carros que irrompem nas poças da estrada, molhando os passeios, salpicando as pedras do caminho.
O que vejo quando acordo é um nevoeiro que se dissipa, como no fim das histórias mágicas, qual ponto final no conto interrompido por um aparte, depois retomando a linha da narrativa. Esse nevoeiro que envolveu as esquinas na madrugada, escondeu corpos e mostrou vultos inominados na beira da estrada.
E lembro-me das horas que passam tão depressa, que correm desnorteadas e me escapam das mãos cerrados. Tão depressa. Simplesmente tão depressa. Adormeci e não te ouvi chegar. Boa noite atrasada. E bom dia agora.
.
.

15 de março de 2008

Desconcerto

Deita-te comigo. Lê as histórias que te conto sem falar.
Está escuro
e o silêncio ouve-se atrás da porta.
.
Posso deixar a cabeça cair em ti
e fazer de conta que as horas pararam.
Não te peço, olho-te nos olhos
e digo-te como estar sozinho enlouquece,
ali, sem ver a luz,
sem nada que valha a pena,
sem ninguém
a quem dizer
olá.
.
E por isso deslizo um abraço.
E fico longe dali. Tão longe dali e de tudo o que se esconde nos becos do vazio.
.
Tão perto de um boa noite.



.

13 de março de 2008

Aconteceres

Uma vez vivida a perfeição, todos os pequenos quês desinteressantes e acontecimentos circunstanciais vazios de conteúdo, são nada mais do que nada; uma imensa perda de tempo e gasto desnecessário de sentimentos.
.
Tocado o etéreo como jamais houvera quem o alcançasse, fica cá dentro o conforto desse instante, vivido num tempo e espaço deste mundo, porém certamente caído de um universo que não este. Porque sim, este infinito que cremos expandir-se e afundar-se no gritos abafados de buracos negros, tem um parente próximo; que vive dos nossos sonhos, ambições e momentos únicos de perfeição, a todos eles oferecendo morada eterna.
.
Uma vez tocada a perfeição, as mãos agarram cada pedacinho de si e não deixam que fuja. Não deixam que escape do dia nem da noite que acontece; não se abrem ao desbarato e, antes, descerram-se lentamente ao Sol ou embaladas pelo perfume de uma vela na escuridão, oferecendo vida às memórias desse agora ou desse ontem que as coloriu e aqueceu. Nem que por uma vez. Nem que por um instante.
.
Porquê? Tão simples, tão belo, tão misterioso quanto isto: pela serenidade sem preço que a perfeição de um olhar deposita no fundo de nós, para sempre. A perfeiçao que nos fala ao ouvido depois por dentro. Quando, sozinhos, adormecemos na sua companhia, procurando o sono. De corpo caído. De cabeça noutro mundo. Um daquele outro universo. Aqui tão perto.
.

7 de março de 2008

Vistas

Já vi como vive a gente grande.

Vai andando.
Vai vivendo.
Sobrevive.

.
Cada vez mais longe das coisas sem nome mas que se conheciam lá dentro.
Esquecendo o fabuloso.
Perto do mero possível.
.

.

3 de março de 2008

Registos

Perdi a conta aos dias, às horas, a esse tempo que se conta. Perdi a noção do espaço, das ruas e dos lagos que se vêem e tocam e cheiram de forma tal que se não duvida da imortalidade do cantinho que ocupam na ordem das coisas. De todos perdi o rasto. Vejo sim rostos, risos, conversas, caminhares em passeios de cimento, degustações à sombra de um Sol que não queima. Mas de nenhum conheço a essência. De todos adivinho a natureza e delineio os contornos, porém qualquer deles se distancia de mim como o Universo se expande, para já, mais do que contrai. E, para já também, nesta relatividade que nunca se inventou apenas descobriu, prefiro que se não acerquem mais do que o necessário. Não lhes conheço a essência e o perfume que emanam não me deita por terra os sentidos estonteados; antes me nauseia sem motivo aparente, ou talvez bem mais enraizado do que se descubra à primeira incursão da enxada. Corpos então se movem neste redor, entre o vento que sopra e a chuva que cai, e o calor da carne queima-me o pensamento de passagem, de raspão, qual bala tocada pela sorte ou pelo azar majestral. Confunde-me as ideias e afasta quem sou para que a estrada se abra à sua passagem; não quero que se detenham mas que prossigam. Seja lá qual for o percurso traçado, seja o tempo que for e que previram perder até chegar lá. Onde? Ao lugar escuro ou radioso onde se deitam e repousam as almas que não quero conhecer. No fundo, porque perdi a conta ao tempo e a noção do espaço, jamais sendo pela mão daqueles conversadores, caminhantes ou gulosos, que quero encontrar novamente motivos para trazer essências aprazíveis à luz do meu dia que não amanhece.
.

.

1 de março de 2008