26 de fevereiro de 2008

Sombras que são

Olhos entorpecidos, corpo dorido ao fim do dia, cabeça vagamente acordada, ainda ouvindo, talvez percebendo partes de conversas e certamente cansada. No fundo, como que um latejar lento e miudinho ecoando no fundo do pensar, configurando aquela sensação de sono que chama e puxa e obriga a deitar. Músculos tensos, pequenas covinhas negras sob as pálpebras, fazendo dos olhos duas luzinhas na escuridão, cabelos irritadiços e hipersensíveis. Ao toque, ao vento, às palavras.
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Um abraço forte, um deslizar de mãos abrindo fendas no betão que parecia circundar cada pequeno músculo. Um massajar das fontes e relaxar da vida. Desligar e esquecer o que parece então tão longe daquele lugar.
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É assim que o dia deve acabar.
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É assim que a noite chega e o sono pode ser tranquilo.
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Dorme bem.
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23 de fevereiro de 2008

Caminhos

Senta-te comigo, escuta o ranger das tábuas que o vento lá fora levanta do chão, vê como está escuro. Nem a Lua se mostra, nem o Sol se esqueceu de alguns raios ao partir para um sono despreocupado.
Deita a tua cabeça pesada no meu regaço e fecha os olhos. Adormece e sonha as músicas que te embalam.
Quando a manhã chegar, o Sol erguer-se-á, imponente como só os melhores sabem caminhar, e chamar-te-á do sono que te abraçou e protegeu das garras de outras recordações.
Vai. Mais leve e de olhos brilhantes.
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15 de fevereiro de 2008

Voltas

Há muitas histórias para contar. Algumas conhecidas, mas sempre e cada novo instante, com a novidade das palavras renovadas. Outras, longe do inteligível, totalmente misteriosas, envoltas na aura da primeira vez que dançam no ar, pousando lentamente no ouvido atento.
Histórias tantas como a gente, porque é a gente que lhes dá corpo e sentido aos pormenores. E, afinal, porque é da gente, das horas que vive e daquelas em que morre pelos recantos sujos da marginalidade imposta, que se constróem.
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Manhãs frias de Inverno, lembradas por caminhadas ao pé da areia, de cabelo desalinhado e casaco bem apertado, afastando, sem sucesso, o arrepio ao toque pelo salpico de mar.
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Almoços demorados na varanda sobranceira ao rio, escutando um burburinho melodioso de aves de canto selvagens, degustando um vinho das melhoras castas; aquele que desenha mil cores nos copos cristalinos, tendo repousado na frescura da adega anos a fio de amadurecimento.
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Corridas, caras afogueadas, livros por vezes espalhados pelo chão. Tudo para não deixar fugir a camioneta que deixava a terra no final da madrugada; esse milagroso contacto com a cidade, onde dormitavam naquela hora e meia de viagem, os homens da fábrica de porcelanas (coitados, tinham que atravessar toda a metrópole e só depois avistavam, se já acordados, as chaminés altas do grande complexo industrial), as anafadas senhoras da limpeza do hospital, a jovem mãe desempregada, de petiz constipado nos braços e um jornal cheio de rodinhas vermelhas e cruzes negras dobrado na carteira, a estudante universitária. E como estava perdida em pensamentos esta rapariga de contrastes, olhando pela janela para o Sol nascente, imaginando os dias e criando memórias que gostaria de relembrar, quando as rugas fossem a regra e não a excepção no seu rosto queimado pelo Sol dos campos.
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Guinchar de pneus, cheiro nauseante a borracha quente, fumo subindo no ar, fim da lembrança. Álcool? Velocidade mal calculada? Sono? Falha mecânica? Pouco importa. A pancada fora forte e nada preocupada com os porquês e ses. À chegada àquela sala com luzes artificiais, monitores de PVC, PIC, PA, FC, FR, SatO2 e gente com batas azuis e máscaras verdes, dando e recebendo instruções, o sono ameaçava apoderar-se de cada pedacinho da sua vigília. Sons poucos familiares ecoavam a cada instante mais longe e as cores fundiam-se num cinzento esbatido. Pensar era difícil. Recordar a namorada acordava as lágrimas. Mas o sono era tanto. E ganhou. Escureceu num momento e os sons silenciaram-se, os olhos cerraram-se e aquela cara perfeita que vivia dentro de si, confortou o descanso que o corpo partido pedia. Para sempre.
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Chocolates derretendo sobre o calor dos corpos. Banhos à meia luz em aromas de outro mundo. Doces gelados que escorriam pela colher única que partilhavam. Eram dias para esquecer o mundo e viver entre-mundos, por assim dizer. Ao sabor dos silêncios, repousando entrelaçados ao cair da noite, esperando pelo sono que lhes unisse os sonhos, afastasse os pesadelos e deixasse acordar não com dois, mas com um novo perfume. Na pele. No olhar. No desejo.
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Há tantas histórias. Tanta gente. Tantos lugares. Há tantas linhas por escrever. E tantas lágrimas contidas no desespero e na alegria.
Um dia... talvez.
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8 de fevereiro de 2008

Mundos

Vou pousar a caneta. Deixar de lado as loucuras pensadas racionalmente num rasgo de insanidade qualquer. As letras escapam das margens e fogem; correm pelo papel, galgam o lápis esquecido ali ao pé e correm rumo a um desejo qualquer que não me contaram. Anseio que apenas elas conhecem no fundo de si. Que vão. Que encontrem. Que vivam noutras linhas e cadernos. Boa viagem. Com pouco para contar e nesse imenso que então poderia divagar dissimulado em histórias fantásticas, pouso a caneta. Ouço o sono ao longe, alucinação, delírio esquizoide. Nada mais. Lembrança vaga. Ténue. Inconstante com o passar incansável dos dias e quase arquivada sem retorno. Vejo sem cor a calma, miragem neurótica fugaz. Impalpável. Ausente. E não me apetece pegar na caneta. Acho, não, certamente alguém acordou a alguns passos daqui. Apenas para beber água. Nada mais. Faço silêncio ainda maior, para não ouvir a minha respiração e poder retornar ao lençol que deixou para trás, até que a manhã chegue. Não me iria abrir os dedos, chamando assim pela caneta que pousei, portanto que vá, durma e se entregue ao descanso do ser e sentir e pensar. Boa noite. Velo pelo seu cerrar de pálpebras no recato do seu pedacinho de mundo secreto. Entretanto vejo o ponteiro rodar. Outros sonos hão-de estar dormindo. A minha caneta também. Ali, deitada sobre a madeira abrilhantada pelo unguento de cedro, manjar dos deuses que cuida da sua longevidade. Onde a deixei. Já sem ideias; daquelas que se imaginam e das outras. Aquelas que criam a realidade.
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5 de fevereiro de 2008

Quente

Ainda sinto o cheiro a chocolate. Como que ainda vejo brilhar à meia-luz, deslizando lentamente, em fio, um quase líquido que enchia o espaço de um aroma quente, subindo no ar e queimando. No fundo, ainda os meus dedos lembram como um perfume se transporta e oferece, vivendo um momento que agora sabem que já foi; em sonhos recordando e recriando os instantes que passaram, foram, acabaram e deles apenas ficou um frasco arrumado a um canto.
Fico agora com um outro momento, que pouco me diz. E não quero escrever como é.
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