30 de abril de 2008

Cordas

Há um saco muito grande, com fundo escuro, bafiento e bolorento, que guarda as coisas estranhas e sem sentido, oferecendo-lhes morada longe da luz. Uma espécie de baú de pano, húmido e frio, armário sem paredes, quarto escuro sem chão. E está no canto norte do meu quarto. Por fora, ainda com cor e adivinhando-se um nome pintado com tinta permanente, desbotada mas não envelhecida. Por dentro, maior do que o espaço que ocupa. Entre o fora e o dentro, a essência dos fantasmas presos entre dois mundos, bradando numa língua muito e só sua, quase sussuros aos ouvidos distantes da gente; gritando histórias de dor e passagens de tempos que não sei onde estão.
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Um saco de tecido espesso.
Ali deixado. Quantas vezes aberto e alimentado.
De quê?
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Lágrimas de tristeza sincera,
desorientação,
interrogação,
incerteza,
desconhecimento. De si. De tudo. Do nada que avança.
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Um saco que não se vê quando a gente se acerca da janela, se aproxima da luz ténue do canto norte ou se deita sobre o tapete macio numa noite embalada pela música do céu.
E que está ali.
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Vês?
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Não.
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Só eu.
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26 de abril de 2008

Águas

Houve assim um dia de chuva e depois um dia de sol. As formigas esconderam-se da humidade que lhes prendia as patinhas, as serpentes saíram das tocas para limpar a pele escamosa adormecida, ambas se cruzando apenas ao anoitecer dessa Primavera incerta, voraz no abafar dos gritos das pequeninas quase afogadas nas poças do caminho, sequiosa de aquecer o sangue do réptil viscoso, matreiro.
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Um dia de sol, um dia de chuva. E nada desse pequeno outro grande mundo nos chegou ao olhar. Preocupados com as horas estúpidas que passam nos nossos dias assim-assim.
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20 de abril de 2008

Neste dia, nesta hora e noutras assim

Chocolate, sabor intenso, negros grãos de paladar incandescente.
Vermelho vivo de vida, fruta dançante aromatizando o ar quente ao redor da gente, aguçando os sentidos com o seu toque fresco.
Pequenos quês, tão grandes que me dói a alma de pensá-los findos e se me alegra o espírito pela simples lembrança de serem reais. Coisinhas de nada que costumam ficar nas entrelinhas, mas que prefiro infinitamente mais sentir na pele quando tocar o papel do nosso tempo; agora, que ainda tenho nos recantos das mãos os contornos de ti, e depois, quando for dormir apenas com uma sombra e um perfume. O perfume, que se esvai nos dias com o vento da manhã percorrendo o meu quarto; o perfume, que nunca sai de dentro de mim.
Pormenores que talvez devessem ser apenas curiosidades, porém que cresceram e cresceram e cresceram e agora já não tenho olhos que vejam onde acabam. Apenas e somente braços que os envolvem no meu presente. Insignificâncias empoladas (?) pelo coração da escritora rebelde e orgulhosamente sem respeito pelas regras, sentidas pela inteligência da mulher, e uma e outra vez revistas quando dos olhos abertos apenas tenho a aparência e somente, isso sim, me fixo nas imagens projectadas por mim, em mim. As imagens animadas de nós. Quando a solidão chega no meio de tanta gente e outras incontáveis coisas, relevantes para tantos mas já sem qualquer animação, imprimindo a menor vibração a este ser; quando é escuro e, sem sono, apenas a lembrança de um respirar se deita ao meu lado. Quando podia escrever um livro de um trago de ar. Sobre a saudade. Sobre a certeza. Sobre as coisas simples.
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15 de abril de 2008

De relance

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Em cada mundo há mundos que se escondem por baixo da mesa, sob panos compridos cobrindo móveis bolorentos e húmidos, envelhecidos pelo passar dos dias no vazio dos quartos. Mundos imensos, construídos pelas vidas desengraçadas e coloridos por alguns, poucos, instantes de evasão. Momentos então e afinal, doutro planeta e não daqueles pequeninos mundos esquecidos no correr das horas. Mas sentidos na pele. Vividos nas semanas. Encarnados para sempre. Mesmo e, talvez sobretudo até, quando esforçadamente se os tenta esquecer.
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Nesses mundos, tantos, que vejo de olhos abertos ou fechados, há muito pouco que valha a pena. Escolhe se queres um pedacinho dessa maravilha.
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10 de abril de 2008

Descobertas


Quando os heróis perdem a piada, deixando de ser personagens do mundo perfeito, nascidas da perfeição do sonho, ficam as sombras sem reflexo, os contornos sem massa.

É nessa altura que se escrevem livros sobre a realidade, choram lágrimas de alegria pelo acordar para o efectivamente e se esquece o talvez.

É então que algumas conversas acontecem numa sala ocre fumada, concluindo-se sobre os porquês e outros quês do dia-a-dia, na companhia de um copo brilhante, no ombro de um conhecido das ideias e das rebeldias.

É então que a loucura se transforma em genialidade. Ou pela primeira vez é de facto descoberta enquanto tal.
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2 de abril de 2008

Perto

Fui passear ao Sol, como que longe das coisas e apenas perto do calor que queimava a minha pele, através da roupa, por entre os espaços do meu cabelo. Não me tinha apercebido que a temperatura subira e de que o cheiro das flores ja se acentuara, adocicando o ar, chamando os pássaros gulosos. Fui dar um a volta, arejar, esticar as pernas. Ver mães entrar de carro no jardim do colégio, avós de mãos dadas a petizes corados pela brincadeira, senhores aprumados nos seus carros, guiando rumo àquela reunião importante, jovens mulheres de aspecto duvidoso saindo de ruas desertas na zona chique.

Fui assim. E voltei.
Deitei-me nos braços da água quente relaxante, emanando mil aromas e reflexos. E assim fiquei.
Não queria acordar daquela viagem ao centro de nada e rica em tudo. Nos pormenores, nos contornos vislumbrados, no paladar do vento da Primavera que outros vivem. E mergulhei na espuma branca do alperce, que me tocava levemente as pontas do cabelo.
Lembrei-me dos minutos em que tenho voz e falo em silêncio. E senti um abraço acercando-se.

Um envolver conhecido.
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