Há quanto tempo não ouvia e revivia, aqueles tempos desaparecidos antes de ser eu sequer um milímetro de gente. Toda a casa vibrava, sem ferir os ouvidos nem vidro algum se partir, ao som, para alguns triste e melancólico, para mim envolvente e mágico, de músicas imortais dos anos difíceis da América pós crash bolsista. Sim, ao som de interpretações esquecidas em salas de todos os tamanhos, cores, feitios, decorações e públicos, por vezes turvas pelo fumo chique, quase sempre inebriantes, inevitavelmente trazendo calafrios à damas, cavalheiros ou acompanhantes de luxo. Porquê? Porquanto contava então como agora, histórias de lágrimas, de sorrisos, de corações apertados, de choros de criança forçada a crescer depressa de mais, de paixões impossíveis (se existirem), de noites frias depois do amor descartável por detrás da boquilha. Porquanto a voz poderosa, oscilando entre silêncios melodiosos e canto sentido, ganhava terreno dentro de cada um dos presentes e, apertando a garganta dos ausentes que a recordassem, contava-lhes uma história familiar. No fundo, a sua; para lá dos casacos de peles, da traça carcomendo os tapetes outrora vistosos, dos trajes pesados sobre corpos que apenas queriam descansar. Nada mais. Apenas dormir serenamente. Olhando o céu escuro lá fora, contando estrelas de sorriso nos lábios, sentindo uma mão na sua. Um toque que traria sonhos de sossego e esperança. Mas aquela verdadeira. A tal que não esmorece e um dia, num acaso, aquece de novo por dentro.
Toda a casa vibrava secretamente ao som que escolhi para comigo acolher a noite. E ninguém se pronunciou. Espírito algum me pediu que afastasse a melancolia. Talvez também eles quisessem aquecer o coração. Eu apenas quis recordar o que não vivi, porém senti, ao prestar atenção aos pormenores de tais histórias de vida desenhadas na pauta de uma canção. Porque, no fundo, nada mais são senão esse tanto. Vida. Acasos, coiincidências. Azar. Benção.
.
.