30 de dezembro de 2007

No ar, no ouvido, por todo o lado.

Há quanto tempo não ouvia e revivia, aqueles tempos desaparecidos antes de ser eu sequer um milímetro de gente. Toda a casa vibrava, sem ferir os ouvidos nem vidro algum se partir, ao som, para alguns triste e melancólico, para mim envolvente e mágico, de músicas imortais dos anos difíceis da América pós crash bolsista. Sim, ao som de interpretações esquecidas em salas de todos os tamanhos, cores, feitios, decorações e públicos, por vezes turvas pelo fumo chique, quase sempre inebriantes, inevitavelmente trazendo calafrios à damas, cavalheiros ou acompanhantes de luxo. Porquê? Porquanto contava então como agora, histórias de lágrimas, de sorrisos, de corações apertados, de choros de criança forçada a crescer depressa de mais, de paixões impossíveis (se existirem), de noites frias depois do amor descartável por detrás da boquilha. Porquanto a voz poderosa, oscilando entre silêncios melodiosos e canto sentido, ganhava terreno dentro de cada um dos presentes e, apertando a garganta dos ausentes que a recordassem, contava-lhes uma história familiar. No fundo, a sua; para lá dos casacos de peles, da traça carcomendo os tapetes outrora vistosos, dos trajes pesados sobre corpos que apenas queriam descansar. Nada mais. Apenas dormir serenamente. Olhando o céu escuro lá fora, contando estrelas de sorriso nos lábios, sentindo uma mão na sua. Um toque que traria sonhos de sossego e esperança. Mas aquela verdadeira. A tal que não esmorece e um dia, num acaso, aquece de novo por dentro.

Toda a casa vibrava secretamente ao som que escolhi para comigo acolher a noite. E ninguém se pronunciou. Espírito algum me pediu que afastasse a melancolia. Talvez também eles quisessem aquecer o coração. Eu apenas quis recordar o que não vivi, porém senti, ao prestar atenção aos pormenores de tais histórias de vida desenhadas na pauta de uma canção. Porque, no fundo, nada mais são senão esse tanto. Vida. Acasos, coiincidências. Azar. Benção.

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26 de dezembro de 2007

Mesa

Ouvia-se um bater de talheres ali ao pé. Não muito longe, alguém como que acordara de repente para a noite e perguntava pelo petisco que adivinhava e pressentia prestes a chegar. Do outro lado da mesa, uma gargalhada ao recordar uma queda na neve há uns anos, fruto da inexperiência dos petizes e da falta de jeito do pai, enquanto a mãe preferia a segurança de ser o repórter fotográfico. Uns lugares mais abaixo, sussuros; contava-se uma história em surdina, nascendo sorrisos dissimulados no momento final da decisão sobre a partida que pregariam a um de nós.
Passos apressados mas certos rangiam o soalho brilhante, carregando nas mãos enluvadas travessas fumegantes, para deleite dos anfitriões e gente de fora, mas já quase de casa também. O dono da casa apresentava as garrafas de vinho que selecionara da garrafeira que ia construindo ao sabor dos anos e do paladar refinado. Abria-as cuidadosamente, deixando que o aroma quente subisse no ar e desse novo perfume ao salão enriquecido pelas iguarias doces e salgadas preparadas nesse e noutros dias, e presenteava família e amigos com novos detalhes de sabor.
Todos iam sendo servidos e adoçicados pelos serventes e pelo acochego que lhes chegava às entranhas.
E foi então que olhei ao meu redor. Observei tudo.

Senti perto uma presença ausente.
A saudade tocou-me no ombro. O sorriso que me atendia o telefone ecoou na minha alma. A mão que afugentava o frio dos meus dedos gelados acariciou-me por dentro. Mas só aí.
Não estava ali.
E por instantes, também eu não.
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24 de dezembro de 2007

A página do desabafo natalício de um livro que não existe

Tanta gente festeja sem saber bem o quê. Tanta gente, ainda mais talvez, se deixou corromper e enterrou o que sabia ser motivo de alegria no Natal. De todos eles tenho alguma pena; uma certa mágoa cresce por vê-los, crescidos ou mimados petizes arrogantes, brincar ao Pai Natal, gastando fortunas enquanto exibem sorrisos de plástico (e, não raramente, sofrendo por dentro por não poderem dar-se a esse luxo ou por saberem, secretamente, que nao há real motivo para tal); esssas, que encheriam os bolsos de Pessoas igualmente gente. Se ao menos soubessem no ridículo que caem... Se soubesssem quão melhor é um olhar amigo mergulhando fundo no nosso; um abraço, quando saímos porta fora e as botas se enterram na neve que dançou durante toda a noite e agora repousa ao pé de nós, brilhando ao Sol tímido que se ergue na madrugada ensonada. Ou então sou eu que distorci a realidade e já não há destes momentos. Mas sinto na pele que ainda pode haver Natal assim.
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21 de dezembro de 2007

Hoje... e sempre

São os passos que se dão simplesmente ouvindo as pedrinhas do caminho. Sob um céu de nuvens geladas, azul como o infinito que vês ao entrar bem fundo no olhar que te acompanha.

São os passos e o sorriso, que rasga as cortinas pesadas que descem ao cair da noite. Sob o abraço da serenidade e cumplicidade sem outro nome que se lhe conheça.

São as pequenas coisas neste Inverno, nestes dias, nesta hora longa ao som do silêncio. Que pintam os sonhos, falando-nos ao coração enquanto o sono reina.
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19 de dezembro de 2007

Correio azul marinho

Se fosses embarcar numa viagem sobre carris, daquelas diferentes da maioria das de hoje, onde se cruzam montes e vales, rios e lagos, chuva e sol, no comboio outrora a carvão e hoje veloz e silencioso, dir-te-ia para olhares pela janela. Seguires os postes que passam depressa, um pássaro errante no céu que o teu olhar alcança. Fixares por momentos esse mesmo olhar num arco-íris inesperado, quando a chuva toca o ferro e aço da carruagem, mas também o chão verdejante das planícies; quiça consigas ver o pote de ouro lá ao fundo. Perderes-te dentro de ti ao som de uma música qualquer tocando perto do ouvido, como sei que acontece quando o sentimento e o pensamento não te deixam dormir. Fugires então do banco aveludado onde seguisses sentado, sentindo a dor da lebre abatida enquanto o teu comboio avançava na floresta, a confusão da criança perdida na feira daquela vila que cruzaste sem notar, a dor que te cresce no peito e afunda o sorriso.
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Voando antes sobre cidades e matas, funde-te com cada vulto nos aeroportos movimentados, entrando no seu eu, tentando percebê-los e entender-te. Mergulha no betão das cidades, toca a argamassa do símbolos de tempos longínquos, inspira o ar dos jardins esquecidos e redescobre os ícones, perde-te enquanto escutas acordes levados de casa e desenhas com os dedos as pinturas um dia sentidas e esculpidas na tela e no azulejo. Sim, perde-te como sei que errante está uma alma esquartejada; estilhaçada e sozinha entre muitos, que jamais tocaram a superficie do seu imenso oceano de emoções e perguntas. Ah, tantas perguntas e respostas que se evitam, procuram, contrariam, desejam. Mas que sempre agora ferem. Muito. Demais.
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Deslizando sobre rodas no asfalto quente do Sul, digo-te que observes e absorvas as maravilhas invisíveis aos olhos do viajante prepotente.
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Na pequenez que vês no espelho e sentes na pele, digo-te: isola-te um pouco se assim o teu coração pedir. E cresce outra vez devagarinho.
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Não precisas sorrir, fingir, imitar. Uma fotografia aqui, uma descoberta inesperada acolá, um sono atribulado num quarto diferente, um amanhecer esfomeado, relançar-te-ão. Lentamente, a um ritmo que não sei se tem igual. E se o não fizerem, deixarão pequenas cicatrizes na memória que um dia recordarás e talvez queiras ver melhor. Sozinho. No teu quarto. Longe já do comboio que só viste correr distante, das asas pesadas que sobrevoaram o mundo contigo, da borracha que chiou numa curva apertada. No silêncio ruidoso de ti. Aquele que te traz os pensamentos à ponta dos dedos. E aos olhos.
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Talvez alguém os veja depois aí espelhados. Se estiver atento. Ou perceber, apenas e logo ao vibrar do ar num teu piscar de olhos.
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Boa viagem.
Contigo. Com os teus fantasmas. Com quem levas no coração.


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18 de dezembro de 2007

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Saudade.



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16 de dezembro de 2007

Leituras e constatações

Naqueles livros que recolhem pequenas histórias escritas ao ritmo de cada dia, umas mais longas, outras igualmente cuidadas mas um pouco mais poupadas em palavras, quase sempre leio umas páginas relembrando o Natal de infância ou aquele que hoje acontece, não raras vezes descrevendo o escritor, amargurado com a sua própria inoperância face à tristeza, fome, frio e abandono da gente que o cerca nas ruas aparentemente cheias de alegria, as rotinas desses dias de Dezembro; a dos bolos e salgados, das prendas e dos enfeites piscando por tudo quanto é canto, da azáfama da quinta de infância e da cidade de agora, e aquela menos conhecida (ou preferencial e, quiça, convenientemente esquecida) dos pés gelados e barrigas pedindo o que sobrar da mesa da primeira.
É assim, nesses livros.
No meu, que não existe, que apenas se pode folhear na imaginação, não há páginas assim. Nem sequer enfeitei a casa. Tão-pouco andei de loja em loja procurando os adornos perfeitos que jamais se encontram. O presépio espreita sob o candeeiro, mas apenas ganhará vida na noite de Natal, quando realmente faz sentido. Árvore e luzinhas e fitas e doces sem fim, deixando por vezes um cheiro enjoativo no ar, tal a mistura de sabores, ficam para outra vez. Ou para quem quiser adormecer na sua companhia ou sentir o calor das pequenas luzes quando, despertado a meio da noite, atravessar a sala com um copo de leite e regressar à cama ainda quente.
Eu, desejo somente dormir tranquilamente toda a noite. E, na da consoada, saber por perto um presépio de palha e barro. E uma velinha trémula ao seu lado.
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14 de dezembro de 2007

Viagem a lado nenhum

Num dia frio, percorri as ruas estreitas da serra.
Subi, ao meu passo, sem procurar ser mais rápida do que o vento nem chegar antes do ruído das motas que aceleravam na estrada principal, a encosta banhada pelo Sol da tarde que nascera há poucos minutos. Escolhi as ruas de paralelo, estreitas, ladeadas por muros baixinhos; aquelas onde passeiam gatos espertos acordados pelo barulho dos pássaros. Olhei as casas de outros tempos, vendo sorrisos enrugados pelo tempo à janela e acenos aos netos que, travessos, corriam porta fora para mais uma tarde de escola. Senti aquele aroma inigualável da fruta nas bancas da mercearia e aquel'outro odor típico: o das drogarias, adivinhando lá ao fundo, para lá das portas de madeira vermelha brilhando ao Sol, os rolos de arame, os vedantes de borracha, as tintas e vernizes, o diluente e as galochas, os carrinhos de mão e todas as ferragens que a imaginação alcance.

Quase no fim do caminho serpenteante, de modo algum cansada, apenas apreciando os pormenores da simplicidade, degustei os cheiros da horta. Eram as couves do Natal. Sim, as hortaliças portuguesas pedindo para ser colhidas, como em criança recordo acontecer por esta altura, lá na quinta onde a madeira estalava, o fumo subia alto sobre cada uma das casas grandes, e menos um pouco nas mais modestas, e crescia a pouco e pouco a azáfama dos doces e pitéus de arregalar o olhar.

Cheguei, entretanto, lá acima. Saí das ruas onde caminhara e parei numa espécie de miradouro improvisado. Podia ver, ao longe, toda a cidade envolta num céu azul pintalgado de núvens de gelo. E ouvir o silêncio interrompido pelos sinais da gente, dos animais, das plantas oscilantes ao toque do vento. A música que me acompanhara na subida, sei lá se ininterruptamente, tocava baixinho ao meu ouvido. A letra, esse desabafo embalado pelos acordes, martelava e contava uma história. Talvez tenha sido por isso que a escolhi. E pela memória.
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And I'd give up forever to touch you
'Cause I know that you feel me somehow
You're the closest to heaven that I'll ever be
And I don't want to go home right now
And all I can taste is this moment
And all I can breathe is your life
'Cause sooner or later it's over
I just don't want to miss you tonight
And I don't want the world to see me
'Cause I don't think that they'd understand
When everything's made to be broken
I just want you to know who I am
And you can't fight the tears that ain't coming
Or the moment of truth in your lies
When everything feels like the movies
Yeah you bleed just to know you're alive
And I don't want the world to see me
'Cause I don't think that they'd understand
When everything's made to be broken
I just want you to know who I am
I don't want the world to see me
'Cause I don't think that they'd understand
When everything's made to be broken
I just want you to know who I am


10 de dezembro de 2007

Minutos sem fim

Talvez devesse estar a trabalhar ou a ler um livro que me cultivasse o intelecto ou a ajudar alguém que precisasse de uma palavra amiga. Ou então talvez fosse bom que estivesse longe de tudo isso.
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Mas estou simplesmente aqui, olhando o Sol que se põe devagar no vale que se estende para lá desta encosta onde arranjei morada no tempo frio. Vendo as cores da estrela que parece mergulhar no casario que outrora poucas luzes oferecia à noite, escutando o ruído da gente que trabalha atrás do volante na estrada que apenas adivinho. De caneta na mão e um bloco de linhas azuis no regaço.
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Um cachecol felpudo, uma camisola quente, botas grossas que separam de mim o gelo do chão, são os adornos que envergo. Nem as palavras os têm agora. Para quê eu então, se o frio reina nesta terra e as conversas se afundam nos textos que sonho, dispensando eufemismos corruptores da realidade?
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Estou simplesmente aqui, procurando descobrir como se faz bater mais devagar um coração desnorteado sem saber porquê; como se ensina o pensamento a sossegar para que durma de olhos fechados. Toda a noite. Até que a manhã chegue e traga de novo a estrela que agora me foge da vista e arrefece a ponta dos dedos.
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Olho o papel e distingo umas linhas escritas ao sabor do vento de Norte que se levantou. Acontece, quando se pega em caneta e papel. Surgem histórias. Que depois se contam.
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5 de dezembro de 2007

Vendo este tempo e estes dias que deslizaram

Já ouvi tantas histórias. Incontáveis filmes entraram também na retina e fotografias sem número foram vistas sobre mesas de café, areia molhada, sofás de todos os feitios e toques. Vi, revi, senti até tudo isto, mas pouco guardei como meu na memória e no fundo da recordação, naquele lugar onde nada se perde nem transforma; antes permanece intocável e magnífico. Afinal, pouco ou nada era pertença minha, ambição ou desejo concretizado. Talvez apenas momentos de gente alheia a mim, que desenhava no ar conversas de alegria e pesar, pedindo silenciosamente que me sentasse e escutasse as peripécias das vidas que iam sendo suas, mas que pouco conseguiam colorir. Pelo menos aos meus olhos. Estes de cor perdida que olhando o mundo lá fora, abriam a alma às suas palavras de vitória, humilhação, amores e desamores. Sendo amigos se lhes pedissem mesmo sem pedir.
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Já ouvi acreditei, mas sempre pensando secretamente que muito faltava em cada pedacinho do que me contavam. Na verdade, uma imensidão de tudo parecia estar ausente dos relatos, dos sorrisos fotogénicos, das prendas um dia abertas por gente, no fundo, de carne e osso como eu.
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E apenas pensava que ambições nascidas em mim jamais poderiam cobrir-se de pó, sorrisos forçados não teriam lugar nos anos da minha vida e dias solitários seriam preenchidos pela companhia de mim, sem procura de gente pela gente e, no fundo, só porque sim.

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Curioso como não perdi a vontade de ser Eu e aquele pensamento persiste.
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Curioso também como um dia vi tal anseio e raciocínio estampados noutro rosto, ganhando vida num olhar que falava para todos mas também como que numa frequência perceptível somente para quem prestasse atenção. Essa que preferi à banal. E que me contou tantas histórias realmente reais ao longo do tempo, sem promessas de rosas e doces, sem fingimentos de ocasião, sem adornos que se estragam com o rigor das estações.
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Curioso e diariamente surpreendente, como continuo a ver e tocar o rosto que um dia descobri na multidão vazia de Pessoas, conhecendo agora de cor os seus contornos, esperando um dia desenhar com as minhas mãos cansadas, as rugas que chegarão ao redor dos seus olhos e os cabelos caiados que abrirão caminho sorrateiramente; com os anos, com as quedas e vitórias que deixam marcas no fundo da gente.
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Curioso e real.
Sim, real.
Sem dúvida que real, porquanto o sonho não abraça ninguém quando as lágrimas correm ou o sono foge do corpo e alma importunados pela preocupação, pela dúvida, pelo medo.
E eu fui abraçada.
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2 de dezembro de 2007

Olhare e vere

Sabes quando tens assim uma espécie de peça especial de um puzzle grande e complicado, demorado e desafiador, daquelas que encaixam em qualquer canto ou entre quaisquer outras duas, como que se de peça-mestra se tratasse? Uma peça matizada de mil cores que se funde com a história do puzzle, qual camaleão na paisagem? Sabes do que falo? Imaginas ou recordas na tua cabeça o que me veio agora à memória? Pensa então um bocadinho, acende uma vela bem lá no fundo de ti e procura nas gavetas poeirentas da lembrança. Vasculha, destapa os momentos que já foram e que cobriste com lençóis brancos, agora que és grande e brincar nada mais é do que um sonho por chegar.
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Há gente que te pode fazer tanta falta como essa pequena peça maravilhosa que sempre ajudava a terminar o entretenimento de uma tarde. Há gente que está ao teu lado tão silenciosa como a noite de nevoeiro nas margens do rio, contando-te histórias fabulosas que antes só vias na tampa colorida da caixa do puzzle, sussurrando-te ao ouvido ou espelhando no seu rosto, lendas tornadas reais num instante, num olhar, apenas. Há gente assim, que diz boa noite e te abraça quando os pesadelos atormentam a noite, aconchegando-te, sorrindo-te no escuro. Mais do que o brinquedo que construías com a peça recortada.
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E eu conheço gente assim. Respira o meu lado.
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