29 de maio de 2008

Pousada e dormindo

Tenho a caneta presa. Ferrugenta sem ter apanhado ar do mar ou ser de ferro, sem estar escura nem áspera. Gasta de muitas letras, mas ainda plena de voracidade, porém sem pingo de tinta escorrendo no papel. Ali pousada e eu aqui, sem lhe pegar nem saber se arrume ou deixe estar. Ao ar. Ao tempo. Outras vezes assim estancou e naturalmente recomeçou a andar nas ruas das histórias e dos acontecimentos encontrados nos dias e nas horas que correm. Outras vezes. Mas agora sou eu quem não lhe quer dar o empurrão, tão-pouco querendo que me reflicta ou a outra coisa qualquer. Porque preciso de ser eu, uma nova pessoa ou apenas um fantasma sereno, para valer a pena.
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23 de maio de 2008

João Pestana

À noite... à noite gosto de dormir. Barulhos, loucuras, copos, carros, luzes desfocadas num caminho que se percorre de cor. Não. À noite quero descanso, nevoeiro lá fora, chuva forte batendo enraivecida no asfalto, céu limpo deixando que brilhem estrelas quiça de um outro universo que não se auto-restrinja; seja como for, um fechar de olhos no regaço de uma lembrança ali ao pé. Escutar as músicas que me chegam ao sentir por entre os espaços do ar, contado histórias, mostrando cenas interrompidas de um filme inacabado. A simplicidade de um dia e outro. Sem a inutilidade de uma vida sobrevivida sem interesse, descartando a futilidade dos sorrisos, esboçados porque sim nos lugares de sempre. A tranquilidade de uma certeza. Sem a dúvida da certeza intranquila que agora é e devia ser outra coisa qualquer.
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À noite... à noite deito-me e gosto que me falem, na solidão, do silêncio sussurante lá fora, dos candeeiros que mostram o pontão àqueles olhos errantes que o fitam ao longe, da continuidade no abraço. Não. À noite queria descanso. Queria dias com letra maiúscula.
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22 de maio de 2008

4 tábuas

Histórias de vida são as que se publicam no fim, as que vão surgindo e crescendo ao sabor do tempo e do acontecer que lhe dá cor. São narrativas póstumas da alma, que as canta, errante, entre paredes outrora barreiras e agora cortinas de fumo.
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Não quero esperar para vê-las ganhar corpo quando nada mais for do que pó entre raízes. Já não poderei então prolongar momentos, discutir dúvidas, aliciar os vulneráveis. Não quero esperar por ter histórias de vida para contar. Quero antes uma borracha gigante para apagar a imensa inutilidade que tinge estes dias e sufoca o ar, que não respira, não se renova, não se inspira nem se permite respirar. E quero um lápis que escreva na água, para poder mergulhar no silêncio do mais longínquo dos lagos, sossegadamente assim abrir o caderno que ainda tem o teu perfume e cravar linhas dos dias que me levaram nessa viagem. Quero sentar-me na beira do rio e reler as palavras do meu mundo uma única vez, somente para não esquecer recados que queira dar aos aluados, esses que caminham em círculos apertados nas ruas bolorentas ou nas muitas avenidas ruidosas, perdidos no espaço, sequiosos de futilidades.

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E depois quero, quero, quero, assim tão-simplesmente, quero adormecer.
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17 de maio de 2008

Ponteiros

Não me digas que tens horas. Hoje, não as tenhas. Deixa lá fora o relógio, os ponteiros, o tempo que corre pela sua mão. Deixa longe de mim esse momento de partir; põe bem distante de mim a sina da ida. E não me digas que hoje tens horas. Não, hoje não. Esquece a outra gente, sê egoísta neste instante que agora é, mesmo que neste em que agora já escrevo, mais adiante na folha, tenhas que voltar à rectidão de Ser. Mas não me digas que tens horas. Leio todas essas palavras nesses teus grandes olhos que me fitam... só não consigo que os meus ouvidos escutem o que outros sentires já sabem. A hora em que as horas chegam e pronto. Fica o pouco e vai-se o muito.
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Deixa-me só dormir um bocadinho. Deixa-me fazer de conta. Deixa-me adiar o que não quero, não gosto, me incendeia de coisa nenhuma e... me faz sozinha.
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10 de maio de 2008

Falta-me...

Não se explica, esta coisa estranha que me devora por dentro, este sentir que me falta a normalidade dos dias, este querer que as horas passem. E o céu, que ora se escapa do azul, ora de enlouquece e reveste de luz que fere os olhos cansados do escuro, foge-me das mãos, viaja pelo universo e deixa para trás o chão cá em baixo, onde cada passo ecoa no vazio.
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Mas se isso não tem explicação corrida nesta tinta, muito menos a encontram meus pensamentos para aquele mundo paralelo que habita mesmo aqui ao lado. Onde se dorme sem saber, onde o sono chega sem pedir, onde com a permissão do sossego de alma, se abraça o confidente de todas as horas. Sem nome, com voz de mil coros sussurrantes, com aroma de aconchego da saudade que, maldita língua esta, tinha que trazer aos meus ouvidos.
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Onde se dorme sem saber...
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Onde a manhã chega nos braços da chuva, embalando de mansinho um sorriso quando as pálpebras se erguem no silêncio e vêem. Vêem ali mesmo, ao pé, no mundo real que avança noutro ritmo, o único sorriso verdadeiro que ilumina uns olhos acabados de acordar. Meus. E teus..

7 de maio de 2008

Wires

É um dia que acaba, depois de ter sido muitas horas e um Sol tímido que se mostrou já mesmo antes de ir dormir.
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Aqui, perto do cheiro a mar e perfume de rosas queimadas, vi adormecer o vento revolto, chegar a noite confusa, abraçando em espinhos os moribundos sem lugar seu e cama de ninguém. Peguei num livro de páginas mil e frases desencontradas, escutei os motores lá fora, partindo para longe. Li um excerto de nada de especial e os olhos detiveram-se uns segundos em notícias desinteressantes, empoladas na televisão como flictenas dolorosas após caminhada desgastante. Se fumasse, teria pegado no maço encurrilhado e saciado o vício inquietante, afogando a culpa da doença futura num café forte, amargo, fumegante. Ou teria até devorado um chocolate aromático, choramingando mágoas estúpidas momentos depois, no chão frio de mármore de um outro quarto. Apenas, pelo chegar ao fim de um dia de horas sem chuva, somente nevoeiro sem orvalho, nuvens sem geada. Apenas, pela lembrança de ninguém.
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Mas nunca assim realmente. Pela simples recordação viva de gente única e singular. Em número. E no Ser. Sim, no ser com letra destacada, pela simplicidade e conforto da alma que transporta ao sono atribulado que me visita sem pedir.
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5 de maio de 2008

XX 3

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O meu, este nosso tempo de estar. Uma forma de vida; uma parte de mim que me falta, depois de ter crescido vinda do nada, surgindo de tudo quanto poderia imaginar na plenitude do espírito, sempre que parto e não fico. Qualquer instante de silêncio absoluto, respiração calada, conversa em surdina. Qualquer... e cada fracção de hora que não conto e que corre. Tão depressa. Tão mais depressa do que o desejo.
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O meu, este meu tempo que cheira a ti, que sinto nos dedos como pele quente e de aroma... nosso.
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O casamento das almas. Muito além do dos Homens. E curioso. Nosso.
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