30 de novembro de 2007

Instantes de reencontro


.
Respirei aquele ar frio, vindo do mar, fechando os olhos sem querer mas por serem pequenas facas geladas as gotas de um fino nevoeiro que baixava sobre a cidade. Lentamente. Muito devagar, naquele limite da terra banhado pelo Atlântico. Oceano imenso e surpreendentemente calmo ao chegar o fim da tarde, deixando-se cobrir por nuvens baixas, ainda translúcidas, matizando o Sol que se punha e maravilhando quem passava e, por momentos, se detinha. Quer ansiasse pelo regresso a casa, percorrendo a marginal que se enchia de faróis, quer não a tivesse quente e acolhedora; antes a carregasse às costas. Dia após dia. No calor do Verão, no Inverno húmido e escuro.
.
Respirei esse ar que conhecia desde sempre, que falava comigo baixinho quando a voz da gente se calava ou articulava palavras que não me diziam o que quer que fosse que merecesse ser ouvido.
.
E senti no rosto a chegada da noite, iluminando os passeios, mostrando os contornos do que eram apenas sombras ao amanhecer. Caminhando, arrepiei-me ao cantar de uma nortada e tive a certeza de estar no sítio certo.
.
Na minha cidade, na companhia do ruído das pessoas sinceras, dos acordes melodiosos que apenas ouvidos aqui nascidos sabem escutar, do cheiro a mar e a flores de Inverno.
.
Aquele lugar único que aconchega o coração na solidão. Que abraça cada um ou dois de nós, nos torna mais cúmplices e conversadores em silêncio. Partilhando medos, mentiras, sorrisos matreiros.
.

28 de novembro de 2007

Conversas

Não é vergonha, não é humilhação da gente, não é fraqueza alguma nem tão-pouco sinal de imaturidade. Não, nunca.

Não é reflexo de infância atribulada, insegura, infrutífera de ensinamentos para a vida e daqueles pequenos grandes nadas que fazem crescer em sabedoria. Não, nunca, lamento repetir.

É antes um reconhecer do valor que lhes chegou com os anos que têm e que ainda nos faltam, a vivência de tempos diferentes mas, sem dúvida, por vezes tão iguais, os erros que lhes tiraram o sono, as vitórias nos momentos inesperados. É, inequivocamente, olhar com respeito e aprender para ser aquilo que de nós se espera: cada vez mais e melhor.

E o que é afinal tudo isto que não é nada de mau porém somente um grande bem?

É poder chegar perto do pai, da mãe, do irmão que nos protegerá até à morte, olhar os traços que nos seus rostos têm algo de nós e, sem medo nem hesitação, pedir um conselho, uma opinião.

Não por fraqueza ou facilitismo de criança grande mimada (quem poderia pensar tal a menos que, para lacrimejo da sua alma, não tenha podido fazer o mesmo?). Sincera e verdadeiramente, antes por reconhecimento das limitações do nosso julgamento quando o que se quer é nada mais do que ser um pouco mais Pessoa, mas se sente encarnada a dúvida, a incerteza. Porém não se quer pôr de parte a inteligência e se procura pensar a dois.

Para agir sensatamente e aprender.

Para deitar a cabeça na almofada com a certeza do apoio de quem jamais nos quererá mal. Ao contrário de muita gente.

Fala, escreve, olha-os nos olhos. Sente o seu abraço e deita-te se for preciso no seu regaço até que o sono chegue. Não serás menos. Mas mais. Muito mais por beberes do seu amor e sabedoria.

Até que um dia, perto ou longe não importa, faças o mesmo por quem te bater à porta e pedir um instante do teu dia.

Humilhação? Fraqueza? Apenas o errar por orgulhosamente ousar pensar saber já tudo e sobre tudo poder decidir.

.

25 de novembro de 2007

Momentos no Hospital

Ao percorrer os corredores largos daquela casa da saúde, da doença, da morte e da vida que começa a todo o instante, aqueles onde não há Sol que brilhe nem Lua que faça sonhar, sentia, isso sim, o frio da noite que chegara e que não vira com meus olhos. Um ar invernoso que me arrefecia as mãos e arrepiava os olhos cansados, como que contando a história da noite que começava longe dali, mesmo que apenas à distância de uns passos, uma porta, um curto caminhar.
.~
Ao percorrer os corredores entrançados e movimentados, via a alegria do nascimento, a tristeza da impotência, o desespero da solidão que chegou sem aviso, o alívio da pequena esperança de cura.
.

.
E sabia que era também eu parte dos sorrisos e lágrimas da gente inominada que um dia cruzara os portões daquele reduto em busca de respostas. Aquelas que nem sempre posso encontrar para lhe sossegar o coração.
.

22 de novembro de 2007

Memórias

Era um daqueles caminhos longos, serpenteando no meio da vegetação rasteira, perfumada de mil odores que subiam no ar e adoçicavam o sol nascente. Um trilho galgado por gente sem nome nem destaque, desenhado na terra solta da montanha num tempo que a memória já não lembra, tornando mais próxima a aldeia eregida lá no fundo, no vale verde e orvalhado, e as pastagens íngremes que engordavam cabras e ovelhas de olhos vivos; aquelas que eram um desafio alcançar para pequenos guardadores de rebanhos, que corriam estrada acima e nem parávam quando o asfalto desgastado dava lugar ao caminho sinuoso, antes orgulhosamente guiando os animais que uma mãe atarefada lhes confiara.
.
Era um daqueles caminhos ladeado, aqui e além, por pedras grandes e redondas, invejáveis pontos de paragem para recuperar o fôlego, abrir o saco da merenda, deitar o olhos, de esguelha, ao rebanho matreiro e apreciar as árvores, campos, rios e cumes a perder de vista, até o dia arrefecer, o Sol descer do ponto mais alto do céu e ser tempo de reunir os animais.
.

.
Um caminho que, ao entardecer, iluminado pelos raios caídos de um Sol mais fresco, guiava os pequenos pés dos pastores até casa. E aí, mesmo antes de entrarem na cozinha inundada pelo cheiro do pão acabado de fazer e da sopa que ganhava novas cores sobre a lenha crepitante, despediam-se de cada cabra e ovelha ensonadas com um "até amanhã e durmam bem; vou agora eu descansar no colo da minha mãe".
.
O caminho que a menina rica da cidade aprendeu a conhecer quando se refugiava no silêncio da distância. Para assim perceber a real dimensão do mundo.
.

16 de novembro de 2007

Real world

A vida da gente é tão curta, tão imprevisível no seu decorrer e ainda mais no seu fim, tão inesperada nos encontros e nas despedidas que ficam por acontecer. É uma vida onde se contam histórias, escutam melodias que tocam o coração, passam dias na companhia dos vizinhos de sempre, sonham ambições do tamanho deste mundo e de um outro aqui ao pé. Um tempo passado de olhos abertos caminhando ora sozinho, ora com companheiros de viagem que estendem um braço quando as pedras no trilho estreito fazem este corpo tropeçar, vacilar, quase cair.
.
A vida da gente é tanto que não lhe chega o tempo para se descrever e dizer o que pensa de si própria. E então ficamos nós como que encarregues de, num instante de sossego, olhar para tudo quanto é e contar depois a quem passa. Um bocadinho de cada vez. Compondo a lenda da vida da gente.
.
Essa vida que se esfuma num estalar de dedos por ordem desconhecida, dela ficando a memória do que foi e como o seu viajante a coloriu.
.
A vida que ganha e perde sentido num momento de viragem, se esbate nos contornos ao bater dos sinos e termina abruptamente como começou.
.
A mesma que me diz agora o quão egoístas podemos ser, chorando sobre o nosso leite derramado na chávena de porcelana fina, mesquinhos e pequeninos nas nossas birras e desejos de perfeição... quando o simples respirar pode estar a ser negado ao nosso lado.
.

.
Amaldiçoada esta mania das grandezas quando já se tem tudo para ser muito mais do que tantos e tantos ao redor, ela que traz as lágrimas ao rosto quando deveriam ser sorrisos rasgados. Sim, maldita seja a tristeza ensimesmada que só acorda para a realidade quando leva uma bofetada do dia de agora e, felizmente, ao menos, vê como realmente triste pode estar um coração ao pé de si.
.
Senti o abanão do real que me circunda. E apenas a revolta comigo me encheu o peito. Pelo egoísmo do querer, pelo esquecer da benção que tinha. Sou humana. Não esqueço a minha desilusão e tristeza. Mas não posso deixar em segundo plano os corpos que sofrem também. E talvez muito mais. Precisando de um abraço.
Um olhar.
.

14 de novembro de 2007

Ecos

.
Acordando depois de não dormir, ou de ter tido a cabeça meio pousada na almofada umas horas, sem ter entrado totalmente no mundo dos sonhos e dos pesadelos que os perseguem, lembrava momentos que apenas podiam ter sido um acontecer na terra do sono.
.

Foi confuso.
Estranho.
Não dormira porém sonhara. Ou dormira entre despertares sem conta, cedendo ao cansaço, deixando chegar pensamentos feitos sonhos no escuro.
.

Recordava um sorriso de boas vindas e algumas palavras que já não sabia distinguir de olhos abertos. Como se fossem reais. Como se fossem realidade.

.
"Lamento desapontar-te", ainda parece ouvir-se do fundo da cabeça semi-erguida, "minutos de sono tomaram conta de ti e o desejo desenhou as imagens que quase tocas agora; mas não passam de imagens. Não são reflexos do que possas encontrar escondido sob uma cortina."
.
E assim se regressa ao dia frio que desponta. E prepara o corpo para sentar e escrever uma história, enquanto foge daqui mas não da magia da escrita quando as palavras faladas são escusadas.
.

11 de novembro de 2007

Do silêncio ao som que vagueia errante

.
.
Estava ainda assim meio escuro, como que se o vento que soprara toda a noite sem cessar, tivesse afastado o Sol da minha casa. Mas já não se ouvia qualquer uivo lá fora, nem as folhas da árvore maior batiam na janela ali ao pé. Devia então estar quase a ser dia e não tardaria a chegar a nova manhã. Mesmo assim levantei-me, calcei os chinelos azuis, enrolei-me no roupão colorido e segui pelo corredor comprido, iluminado pelas luzes trémulas que mostram o caminho na noite.
.
Não levava nada de concreto (nem de vago) no pensamento, caminhando pela força do hábito. Também por ela dei por mim envolta no calor da água fumegante e com cheiro a côco. E depois alimentando o corpo com torradas acabadas de fazer e leite quente, sentada numa cadeira perto do antigo fogão de lenha, ainda frio e sem vida pelo falta de gelo lá fora. Ali fiquei um tempo que não sei dizer em minutos. Até que me pareceu que afinal já era dia outra vez. Gente começaria a acordar, novos aromas dançariam no ar, vozes erguer-se-iam a pouco e pouco do sono agora findo.
.
Daquela cadeira mudei-me para o cadeirão perto da varanda sobranceira ao lago. Só isso.
Um pouco de música vinha de mansinho, por entre os espaços do ar que respirava, do sótão onde alguém procurava livros perdidos ao som de acordes de muitas cores.
Vi chegarem pássaros de Inverno, o gato preto da quinta que procurava o calor de um dia sem chuva, o cão grande regressando da ronda nocturna.
Lembrei-me de ti, como quando adormeci, vencida pela exaustão na madrugada, e acordei sem saber porquê.
E mais nada.
.
As horas passam por elas. Ao ritmo que bem entenderem. Não lhes vou pedir que se apressem ou atrasem porquanto enamoradas pelo instante.
.

7 de novembro de 2007

Ao som da casca que estala

Está ainda calor no tempo do cheiro quente das castanhas estalando no lume, vertendo no ar o fumo branco que delineia a esquina onde repousa o velho que as oferece às crianças que passam. Partiu o frio e a chuva, ficou o sorriso dos petizes e da gente grande ao pegar no cone de jornal que guarda a iguaria por que esperaram todo o ano. Vejo os seus olhos brilharem ao entregarem as moedas e receberem o tesouro quente, oferecido pela avó carinhosa, a mãe apressada, o namorado atento.
.
.
Está um tempo diferente e com ele mudou também quem sou e surge a dúvida do que fui. Os acordares têm apenas o sentido que lhes pode dar aquele desejo que reside em mim, de ver sorrir genuinamente os poucos que me rodeiam. Esse brilho que lhes vem de dentro e que me é suficiente e objectivo maior. Os acordares, explicando melhor o inexplicável, não têm qualquer outro valor nem luto para que o encontrem, porque o que agora acontece à luz do Sol ou na escuridão de noites sem dormir, é vazio de tudo. De sentido, de interesse, de vontade de os encontrar, de tranquilidade, de alegria na alma.


Vazio. Angustiante na proximidade de caras, pessoas, trabalhos, atitudes, comportamentos.
Exaustante.
Aterrador na perspectiva das horas passadas agora e depois destas que se contam.
Solitário. E por isso triste.
Está um tempo diferente e já não gosto da companhia de mim que me confortou tantas e tantas vezes.
.
Talvez escape um pouco na escrita, em histórias nascidas não sei bem onde ou com qeu argumento.
O resto, esse que me pareceu um dia tudo ou perto da plenitude, não conta agora. E dele apenas quero distância. Para sempre.
.

3 de novembro de 2007

Palavra única

Caído cá em casa, Outubro '07



Gente alguma que escreva, afasta o berço das letras da emçoão que a invada. Gente alguma conseguirá libertar as frases que crescem dentro de si, sem que levem um cunho seu, muitos dirão que, por vezes, invisível. Não há gente que o faça. Não me mintam. Não há.
.
Palavras eternizadas pela escrita, moldadas ao papel que as abraça; esse refúgio que me abre as portas do seu recanto solitário, onde correm lágrimas de agonia e o peito se torna demasiado pequeno para conter o coração que sangra. O refúgio que quis encher de folhas soltas e pensamentos nascidos ao sabor da dor. O refúgio que levaria a minha perdição de agora, ao fim dos tempos.
.
Tudo, porque, no fundo, o que se faz quando a mutilação da carne e do espírito da pessoa que nos faz crescer e nada deixa ao acaso quando lembra que somos nós a razão da sua alegria, nos dói como se um naco real de nós próprios tivesse sido arrancado sem piedade, distanciando o sorriso da serenidade? O que nos resta, pobres diabos? E que se pode fazer?
.
Sim, o quê?
.
Sentir apenas esse grito emudecido, que estilhaça devagarinho, com a precisão da águia, cada recanto de nós.
Secar as lágrimas deslizantes no rosto que temos já inexpressivo, deixando-se sulcar pelos finos fios de água nascidos de olhos já imensamente pequeninos com dor; aquela que não passa e que veio pelo laço inexplicável que nos une a uma pessoa boa. Ela, que ainda tenta esboçar um sorriso.
Estar ao seu pé e não não deixar que se sinta sozinha.
.
Aguardando que o dia em que se chegue mais próximo do entedimento do porquê. O momento da percepção enevoada da razão da injustiça.
.
Questionando até lá, na tristeza que se torna palavra única para descrição.
Vivendo uma vida que já não interessa, de olhos postos no preservar do sorriso que lhe vimos ainda há pouco ao acordar e pedir-nos ajuda.
Abafando o choro imenso que a noite relembra, lutando contra o medo de adormecer e o terror de acordar.
Por vezes eternizando palavras na escrita.
Outras buscando o abraço que ainda nos aguenta à tona.
Sempre perguntando porquê.
.